31 dezembro 2010

Boréu

Tudo desaparece e deixa de existir.

Os vínculos que possuímos, ao longo de nossa existência, com as pessoas e coisas, nos fornecem um sem número de experiências tanto alegres quanto de sofrimento. Se as coisas desaparecem é porque elas também acontecem. Acredito que cada acontecimento em nossas vidas manifesta uma intensidade própria, cabe a nós perceber o quanto essa intensidade nos permite usufruir ou não de cada ocasião. Sempre tive dificuldade em compreender como que o ser humano transforma os acontecimentos de sua vida em algo profundamente privado e individual.

Acredito ainda que as nossas personalidades não estejam baseadas no que é propriedade nossa, seja propriedade material ou emotiva. Busco compreender a nossa existência como algo que fortalece a harmonia nas relações entre as pessoas. Não há perda, ao longo da vida ganhamos continuamente. Todos que passam pela gente, mais foram provedores do que qualquer outra coisa e não são nossas propriedades.

Todo afeto que recebemos existe para enriquecer nossa sensibilidade. É muito estranho que ao perdermos uma fonte de afeto, nos tornemos alguém com amargor nos sentimentos. Toda tristeza pela qual passamos existe para fortalecer nossa visão de mundo, para sabermos onde pisar nas próximas caminhadas. É muito mais estranho que ao passarmos por um momento de tristeza, algum tipo de ódio ou rancor se desenvolva em nós.

Uma auto invasão pode ser um caminho interessante. Desaproprie as pessoas e as coisas de si mesmo. Vivencie cada um sem medo, todos irão deixar de existir e não tenha medo disso. Arrisque-se.

28 dezembro 2010

A ex-vizinha, o elevador e a rede social

Foi no elevador da minha primeira residência em São Paulo. A moça morava alguns andares acima e juro, por tudo que há mais sagrado, que a minha pergunta não possuía nenhuma intenção mais maliciosa. Após os básicos “ois, como vai?” eu emendei: - Tu curtes cinema?

Ela: Sim, mas costumo ir sozinha!

Iau!

Foi um dos foras mais sem noção que levei, principalmente porque eu estava apenas, podem acreditar, apenas puxando conversa.

Saí do elevador após um básico “tchau” e entrei em casa. Fui para o quarto e com o volume em estado máximo no meu toca CD Aiwa, fiquei sentindo as vibrações do álbum ‘In Utero’ do Nirvana. Sim, estávamos nos anos 90. E muito provavelmente o nerd criador do facebook mal degustava sua high school.

Pois é, não sou nenhum dos trintões mais bilionários do mundo e muito menos comentarei sobre o tamanho dos seios dessa ex-vizinha aqui no meu blog, porém ‘A Rede Social’ de David Fincher me fez trazer esse trágico papo de elevador como introdução de uma reflexão sobre um dos aspectos desse filme.

Na obra de Fincher, a mágoa de um expressivo fora fez com que um estudante de Harvard desse o pontapé inicial ao que viria ser o todo poderoso Facebook. Mas antes da garota dizer para o nerd que o relacionamento entre eles havia chegado ao fim, o que temos no filme é um diálogo cirurgicamente preparado para nos introduzir não somente ao personagem central do filme, mas também ao elemento crucial de tudo que viria a seguir: fazer parte de algum clube, círculo e por que não, uma rede social.

O roteiro é basicamente uma longa luta judiciária permeada pelos vigorosos valores capitalistas norte-americanos junto com uma obstinação em montar uma das redes sociais mais populosas da internet. Mas o efeito prático do site no ar é que extrapola todos os meandros judiciais, o Facebook se espalhou pelo mundo e o que temos em 2010 é uma rede social já intrínseca ao cotidiano de muitos seres sobre a Terra.

‘A Rede Social’ pode suscitar julgamentos acerca dos valores morais de Mark Zuckerberg, um dos fundadores do Facebook, mas ao longo de todo o filme busquei superar isso, me afastei para tentar compreender o significado de ‘ser aceito’ por alguém ou alguns.

Não é de hoje a necessidade em estar num círculo fechado de pessoas, na Itália do Renascimento, por exemplo, eram comuns as confrarias, círculos de amizades com o intuito de fortalecer a cooperação mútua. Grupos e grupinhos ocuparam a preocupação de muitos humanóides ao longo dos séculos. Mas em que escala vivemos isso nos dias atuais?

A internet parece nos permitir ‘ser aceitos’ onde talvez jamais seríamos, mas ainda bem que nem sempre é fácil, e o plano final de ‘A Rede Social’ talvez ilustre que as nossas relações mais significativas dependem principalmente de como reagimos ao que uma outra pessoa tem a nos dizer. Um dia a minha reação foi escutar Nirvana em alto volume.

27 dezembro 2010

Mergulho

Bem, a primeira década do século XXI ficou para trás. É uma década que parece não ter chacoalhado tanto quanto todo o século XX, mas que fez balançar algumas coisas interessantes. Mas prefiro falar de amor.

Gosto de enxergar o amor como um mergulho. Entramos de cabeça e nos mantemos ali no fundo até o fôlego pedir mais oxigênio. Eis a grande virada em nossas vidas, quando colocamos a cabeça pra fora, reoxigenamos o cérebro e começamos a avaliar se vale a pena mergulhar novamente. Sempre vale!

É bom se perder no profundo das águas, o amor é uma luta pela sobrevivência, precisamos encará-lo como algo que precisa tirar nossa respiração e não o contrário. O amor enquanto um fim é angustiante, ele te prende numa pseudotranquilidade.

Sempre acreditei que a vida precisa de intensidade, olhar ao redor e não sentir nada é um sinal do mais profundo individualismo, o encerramento de eu mesmo por eu mesmo, é a morte do amor.

A intensidade das coisas que vivi nos últimos dez anos me levou a um melhor autoconhecimento. Claro que ainda restam muitas dúvidas sobre mim mesmo, mas seguirei adiante.

Mergulhemos!

20 dezembro 2010

Poltrona das selvas

A chuva caía forte na cidade de São Paulo quando o carro veio para me levar à Unisa (Universidade Santo Amaro) onde eu participaria como convidado na platéia do “Post Factum”, programa de TV realizado pelos alunos do curso de Rádio&TV, e que teria como pauta as Oficinas Kinoforum.

Assisto ao Canal Universitário apenas em raras ocasiões porque considero pouco ousados os programas que ali são exibidos. Gosto de pensar a universidade como um espaço de liberdade e experimentação, aspectos que proporcionariam a gostosa aventura de arriscar, lançar-se ao desconhecido para medir os resultados. Infelizmente o Canal Universitário navega na direção contrária com seus inumeráveis programas de entrevistas, a maioria cansativos por natureza.

“Post Factum” também é um programa de entrevistas, mas com a oportunidade de acompanhar de perto os seus bastidores, abstraí a ausência de ousadia e experimentação e pude verificar uma outra característica relevante para um processo de formação universitária: o empenho e compromisso para que tudo funcione e dê certo.

Pra começar, o grupo de alunos que realizou o programa fez um bom trabalho de pesquisa, que refletiu nas perguntas feitas ao entrevistado Jorge Guedes, coordenador das Oficinas Kinoforum. As questões buscaram apresentar o espírito motivador das Oficinas e saber mais sobre o envolvimento daqueles que as conduzem. Muito mais do que mostrar o valor prático do curso, a abordagem no programa enfatizou captar a sua essência.

Outro ponto positivo que pude observar é a dinâmica de produção, era o terceiro programa que o grupo realizava neste ano, e a familiaridade na condução técnica e de operacionalidade do estúdio se mostravam quase íntimas. Isso levava também a um ambiente mais descontraído, amigos produzindo com amigos e todos numa mesma sintonia.

As águas torrenciais quando caem sobre São Paulo geralmente se vinculam ao caos: trânsito intenso, enchentes, alagamentos e às vezes mortes. Após o programa fiquei pensando se não é de um toró que a produção universitária de televisão precisa para exercitar uma caótica criatividade capaz de proporcionar experiências que vão além de qualquer didatismo. O audiovisual é uma ferramenta forte e contundente, e quão maior for sua versatilidade, mais frutos significativos deixará.

Ao longo de todo o programa fiquei imaginando se há uma real necessidade do cenário dialogar com o assunto tratado. No lugar das tradicionais “cadeirinhas do diretor”, o apresentador e convidado poderiam muito bem estar sentados numa poltrona forrada com pelos de gorila, o que nos refrescaria com um selvagem surrealismo, que por sinal anda muito esquecido no Canal Universitário.

17 dezembro 2010

Taturana

A realização do Seminário de Cinema Contemporâneo em torno de uma recente safra de longas brasileiros confirmou a fina sintonia da Mostra Londrina de Cinema com a preocupação em debater conteúdo.

Infelizmente não assisti a todos os títulos apresentados, confira abaixo a lista completa, mas deixarei aqui uma breve impressão sobre “Vigias”, primeiro longa do pernambucano nascido em Brasília, Marcelo Lordello.

A principal virtude de “Vigias” está em seu aspecto degustativo, a narrativa não empurra o espectador logo de cara no arcabouço da crítica social à qual o filme se propõe. Aos poucos, os elementos vão sendo construídos de tal modo que possamos buscar, conforme nossas próprias percepções, as reais inquietações que o filme transmite.

Logo se percebe que os personagens principais não são os vigilantes entrevistados e muito menos os moradores dos prédios da cidade do Recife. O foco central do filme está nos valores de uma sociedade imersa no medo da violência urbana. Eis a força de “Vigias”. Assistir ao filme não é absorver uma ou mais histórias de vida, e sim nos lançarmos a um debate interior, seja por identificação ou não. Há uma sociedade que sente a necessidade de ser monitorada, pois sente também que precisa se defender. É uma sociedade onipresente no filme e que deixa sua marca através do medo.

Refleti pessoalmente sobre esse estado das coisas na nossa urbanidade. A impressão é que segurança e medo se estabelecem como pilares da nossa sobrevivência.

No debate após a sessão, mediado pelo crítico Luiz Carlos Oliveira Jr, responsável pelo Seminário, Lordello ressaltou que seus filmes partem de suas inquietações, o que revela seu potencial em observar e degustar o que ele mesmo apreende ao seu redor, sensibilidade positiva e necessária para trazer bons frutos à nossa cinematografia.

A Mostra Londrina de Cinema é organizada pela Kinoarte, que também publica a revista Taturana. Na edição que foi lançada durante a mostra, há algumas notas escritas por Kubrick aos 32 anos de idade, na primeira temos o seguinte:

“Eu não acho que escritores ou pintores ou cineastas funcionam porque tem algo particular que queiram dizer. Eles têm algo que sentem.”

Para conhecer mais sobre a Mostra Londrina de Cinema e a Kinoarte: mostralondrina.com

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Filmes exibidos no Seminário de Cinema Contemporâneo durante a 12ª Mostra Londrina de Cinema com apresentação e debate de Luiz Carlos Oliveira Jr:

“Permanências”, de Ricardo Alves Jr (34’/MG/2010)
“Chantal Akerman, de Cá”, de Gustavo Beck e Leonardo Luiz Ferreira (62’/RJ/2010)
“Avenida Brasília Formosa”, de Gabriel Mascaro (85’/PE/2010)
“A Fuga da Mulher Gorila”, de Felipe Bragança e Marina Meliande (85’/RJ/2009)
“Vigias”, de Marcelo Lordello (70’/PE/2010)

18 novembro 2010

Pharmácias

O balcão de vidro da farmácia refletia algumas luzes estranhas, Karina não aguentava mais aguardar o atendente. Mais um minuto e seu cérebro poderia explodir. Mas que luzes eram aquelas?

A iluminação da farmácia era padrão: lâmapadas flourescentes em intensidade máxima. Nada justificava o reflexo no vidro. A não ser que a sua mente estivesse em mais um delírio. Não era à toa que Karina estava numa farmácia.

Ela resolveu curtir aquele momento, uma leve tontura parecia fazer seu cérebro inchar... não, ele não iria explodir. Uma memória distante da infância de Karina veio entre as mais confusas imagens que formavam em sua mente. Era ela correndo com uma boneca sem cabeça. As luzes pareciam ficar cada vez mais coloridas.

Num repente de fúria, Karina esmurrou o vidro daquele inóspito balcão. Suas mãos começaram a sangrar, seu sangue pingava em grossas gotas no chão asseado da farmácia. O atendente apareceu e Karina correu em disparada.

Logo na esquina em frente à farmácia, Karina deu de cara com um homem usando uma máscara cirúrgica. Ele olhava profundamente nos olhos dela.

O sangue escorria pelos delgados dedos da mão de Karina e provocava um brilho quando deslizava pelas unhas sem esmalte.

Ao lado do homem da máscara havia um carrinho de espetinhos de carne sobre uma grelha. O cheiro da fumaça embriagou Karina, que sentia suas pernas perdendo a força, a luzes que brilhavam no balcão da farmácia estavam agora na máscara cirúrgica do vendedor de churrasco. Karina quis gritar, mas segurou a voz pois sua vista estava marcada por raios coloridos. O cheiro de carne lhe embriagou ainda mais. Levou a mão cortada até o nariz, quis cheirar seu próprio sangue.

Karina desabou. A mancha vermelha do seu sangue no rosto lhe deu feições assustadoras. Seus olhos não enxergavam nenhum brilho. Sentiu vontade de dormir, se encolheu e adotou a posição fetal.

A fumaça dos espetinhos cobriu Karina como um lençol suave.

11 novembro 2010

Duas feiras em minha vida

Em 2014, Manaus sediará a Copa do Mundo, o seu estádio é o Vivaldo Lima, conhecido como Vivaldão. Ele foi levado abaixo recentemente para a construção de uma nova arena, moderna e nos padrões europeus, mas foi aos seus arredores, no início dos anos 80, que vivi uma experiência por causa de um tomate.

No estacionamento do Vivaldão costumava existir uma feira livre, e numa noite acompanhei minha mãe, que pra lá foi fazer suas compras. Numa das barracas meus olhos deram de cara com um tabuleiro cheio de tomates, observei um deles, era bem redondo e bem vermelho, em seguida percebi que o feirante estava muito ocupado e com a minha mãozinha infantil de Deus surrupiei o encarnado tomate escondendo embaixo da camisa.

Duas barracas depois, mostrei o tomate à minha mãe, ela perguntou onde eu tinha conseguido e tentei justificar que o feirante não estava olhando. Na minha cabecinha eu havia sido esperto, muito bom em fazer algo sem ninguém ver... Doce ilusão.

Foi uma das broncas mais duras que recebi da minha progenitora. Lembro que ela ficou muito nervosa e me arrastou para devolver o tomate. Fiquei arrasado, mas foi uma lição que levei pro resto da vida.

Mal sabia eu que, pouco antes de chegar aos 36 anos de idade, uma outra feira também me traria boas reflexões, dessa vez sem tomates e sim por conta de um rapaz vestido com samba-canção e gravata.

Um dos grupos das Oficinas Kinoforum/Grajaú elaborou um roteiro onde um cara buscava sair dos padrões através do seu vestuário. A idéia era abordar de forma irônica e divertida o tema do cotidiano com suas mesmices e padronizações. E uma das situações era esse personagem caminhando pelas ruas vestido de samba-canção, gravata e tênis.

O personagem principal foi interpretado por um dos alunos do grupo, o Ramon, que topou o desafio sem nennhuma restrição. Eles resolveram gravar uma cena em que o personagem atravessava uma feira livre no bairro do Grajaú. Acompanhei de perto essa gravação e presenciei uma reação no mínimo selvagem por parte dos feirantes que xingaram o Ramon com os palavrões de mais baixo nível possível.

No dia da exibição dos vídeos houve um pequeno debate e Joaquim, outro aluno desse grupo, comentou o que aconteceu na feira acrescentando que aqueles feirantes muito provavelmente vão pra casa pregando a liberdade, mas que suas reações hostis revelaram o contrário, no fundo não estão abertos a uma verdadeira liberdade de expressão e que essa gravação na feira fez com que o grupo tivesse certeza de que estava no caminho certo sobre o assunto que trataram no filme.

Como professor dessa oficina foi uma satisfação verificar o quanto o processo foi importante para esses alunos, eles se expressaram com liberdade e cresceram internamente com isso. Parabéns ao grupo formado por Joaquim, Katharine, Mariane e Ramon.

06 novembro 2010

Lopes e Rosário

Lopes adora pontes. Fotografou várias ao redor do mundo e resolveu criar um mural na entrada do seu apartamento.

A irmã de Lopes se chama Rosário e duvida da capacidade do irmão em criar coisas, principalmente um mural.

Rosário, em seus 25 anos de idade, considera que seus conhecimentos, limitados em essência, podem lhe fornecer todo tipo de opinião. Lopes não acha isso ruim, ele tem muita paciência com a irmã mais nova, dois anos apenas.

Rosário está preocupada com suas próprias dívidas.

Lopes e Rosário nunca tiraram uma foto juntos.

Um dia eles se entenderão perfeitamente.

05 novembro 2010

Animal Town

Era um escritório da pastoral do imigrante, numa paróquia no bairro do Glicério, em São Paulo. Na sala de espera vários imigrantes, em sua maioria vindos da Bolívia e Paraguai, aguardavam o atendimento com a esperança de encontrar uma solução para seus problemas.

Havia um pré-atendimento no qual um padre muito simpático e sorridente conversava com cada um para analisar seus casos e documentações antes da entrevista com a advogada. O calor tomava conta da sala e um ventilador antigo, mas potente, tentava dar conta do refrescamento local. Um homem de aproximadamente 30 anos, feições indígenas, calça jeans surrada e com um semblante preocupado se levanta e senta à mesa. O padre ensaia abrir um sorriso mas logo percebe alguma coisa.

Por alguns segundos os dois ficaram se olhando, sem palavras. As mãos do imigrante estavam juntas e com os dedos entrelaçados, seus ombros eram caídos e pareciam expressar cansaço. O som ambiente eram vozes conversando em tom baixo, o barulho suave da hélice do ventilador e o distante tráfego de carros na Radial Leste. Mas o silêncio entre os dois homens parecia absorver tudo. Enquanto eu pensava que ali havia o silêncio de uma alma, o padre perguntou:

-Quieres sobrevivir, no?

Essa mesma pergunta parecia estar sendo feita aos personagens do filme "Animal Town", de Jeon Kyu-hwan (Coréia do Sul). Dois homens em luta constante com suas angústias mais internas que parecem transformá-los em dois seres não adaptados a um cruel e opressor sistema de leis e normas da sociedade. Percebi que qualquer luta pela sobrevivências está sujeita não somente ao ambiente externo mas também às sombras mais ocultas de nossas personalidades.

A Coréia do Sul em "Animal Town" vive uma grave crise econômica e o papel do Estado é refletido como um ser ausente, que se limita a saber dos seus reais problemas mas parece amarrar as próprias mãos para não agir de forma incisiva. O forte do filme é que esse painel social não vitimiza os personagens, mostra que sobreviver é difícil e quando os nossos conflitos internos não se resolvem nem através de medicação (em um personagem) nem através da religião (no outro personagem), o chão parece ruir e apontar uma questão: compreender a sobrevivência em sociedade é aceitar o hibridismo das relações que temos com nós mesmos e as relações que estabelecemos com os semelhantes?

O silêncio entre o padre e o imigrante foi significativo, principalmente porque talvez tenha sido a primeira vez em muito tempo que alguém olhou diretamente nos olhos daquele estrangeiro.

02 novembro 2010

Diamante e sonhos

O esmalte de suas unhas já estava bastante gasto e suas olheiras ofereciam charme ao seu olhar. Em suas mãos havia um diamante.

Sozinha no banheiro de um bar, ela admirava o brilho daquele diamante. Tinha a certeza de que poderia vendê-lo e lucrar com isso.

Lembrou que a sua vida jamais havia lhe dado lucro nenhum.

Trinta anos de idade e tudo que ela possuía era a amargura de uma existência. Ela não queria mais sonhar, havia chegado o momento de realizar ao menos um de seus sonhos. E qualquer que fosse o sonho, ele precisava ser resultado de algum lucro. Ela lembrou que a cicatriz na sua nuca já excitou muitos homens, mas foi a ignorância de um que lhe deixou essa marca, resultado visível entre os diversos prejuízos que obteve ao longo de sua trajetória.

Ela se esforçou para não lembrar desse homem, mas era impossível, o sorriso torto daquele monstro pelo qual se apaixonou aos 20 anos está costurado em toda a superfície de sua memória. Quis chorar naquele fétido banheiro, mas o brilho do diamante lhe segurou as lágrimas.

Um carro passava em frente ao bar. No banco de trás estava Alfredo, que aos 18 anos voltava embriagado de uma festa. Ele olhou para dentro do bar e viu homens jogando sinuca e alguns poucos homens e mulheres sentados às mesas ao redor. Mal ele podia imaginar o renascimento que ocorria nos fundos daquele estabelecimento.

01 novembro 2010

Desindividualizar

Sempre gosto de observar o primeiro plano de um filme, a cena que abre a narrativa. Gosto de sentir uma pulsação interna toda vez que do quadro escuro surge essa imagem de boas vindas. O primeiro filme que vi na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi "Turnê", de Mathieu Amalric (França), que recebeu o prêmio de melhor direção em Cannes 2010. A tradução literal desse prêmio é 'melhor mise-en-scène', portanto fui à sessão com a expectativa de saber como o diretor desenvolveu os elementos narrativos de sua história.

Eis que vem o primeiro plano. Nos primeiros 10 segundos me perguntei como que alguém que inicia o filme daquela maneira conseguiu o prêmio em Cannes, mas após esses 10 segundos compreendi da melhor forma possível o porquê. A initimidade de um camarim de artistas burlescas é divinamente apresentado com um enquadramento digno de nota 10. Sem firulas ou efeitos, o quadro tem uma composição que transmite ao espectador a sutileza da relação daquelas mulheres com seus corpos, não sabemos nada ainda sobre elas, mas estamos devidamente apresentados a algo não comum... aparentemente.

Tudo muito simples, um plano apenas, sem cortes e que aos poucos vai se formando com a entrada das atrizes. O filme me cativou de imediato.

Daí em diante, "Turnê" foi uma das obras mais contundentes que vi nos últimos anos. Seus 110 minutos me fizeram pensar que entramos numa era onde o individualismo foi superado por algo muito mais perverso. As relações são minimizadas a um ponto em que nada que não seja exclusivamente do interesse pessoal de um individuo pode sobreviver e mais, precisa ser necessariamente destruído. O filme navega nessa questão e não abre concessões, os personagens e as complexidades de seus dramas são expostos sem a necessidade de compaixão.

Considero tudo isso muito atual, sinto diariamente que o automatismo das pessoas, das informações e das coisas transcendem o individualismo. É necessário parar e buscar um firmamento nas relações entre todos nós. Gostaria muito de falar do final do filme, mas deixarei em suspenso nesse texto. Relacione-se sem medo e solte um grito quando enfim sua música preferida ecoar sobre a decadência.

28 outubro 2010

Dúvida e essência

Atravessei a rua e vi alguém sorrindo, era uma mulher, depois percebi que a conhecia e lembrei que era corinthiana, minha vista desembaçou e cumprimentei Paula Mazini. Ela descia a rua Augusta à procura de um filme para ver na Mostra Internacional de Cinema. Eu subia a mesma via, mas não procurava nada, apenas reorganizava os meus pensamentos após ter assisitdo ao filme "Mães", de Milcho Manchevski (Macedônia).

Mas que bagunça se estabelecia nos meus pensamentos naquele momento?

"Mães" aponta para um embate sobre o registro da realidade e quais implicações com a verdade isso pode suscitar. Eduardo Coutinho havia feito isso de forma maestra em "Jogo de Cena" e lembro de ter subido a mesma rua com o cerébro totalmente revolto. É um embate interessante, gosto de refletir sobre valores agregados e o filme de Manchevski me fez repensar se precisamos encontrar um sentido para nossas verdades.

A história da Filosofia ferveu os cocos de muitos pensadores nessa questão e longe de mim em levar a discussão mais adiante, porém vivemos num mundo intensamente audiovisual que parece nos mostrar a necessidade de alcançarmos a verdade das coisas e das pessoas. A dúvida parece ter se tornado uma vilã. Nesse caso, não estou nem um pouco ao lado dos mocinhos.

Considero que a dúvida maior sempre será em torno da essência, e é nesse ponto que "Mães" me atraiu, por mais que um registro de imagem e som deixe algo para a posteridade, jamais alcançamos os reais elementos motivadores das pessoas. No filme, a morte parece sepultar muito mais do que corpos, a essência de cada um também desaparece e nos restam as dúvidas. Numa visão budista e até mesmo cristã, as dúvidas não precisam nos fazer sofrer, mas há sim muito sofrimento, pelo menos nessas vidas mostradas por Manchevski.

25 outubro 2010

Refletir sobre a liberdade

Quatro grupos. Quatro temas.

O final do segundo dia das Oficinas Kinoforum no bairro do Grajaú foi dedicado à criação dos roteiros que serão gravados pelos alunos. Em cima dos temas moradia, paranóia, infância/tecnologia e cotidiano, os grupos desenvolveram suas histórias com abordagens bem distintas, porém com algo em comum: a relação delicada e às vezes conflituosa de seus personagens com o mundo exterior.

A adaptação a certas regras e convivências parece sempre exigir um esforço muito grande, e fugir aos padrões estabelecidos pode soar como uma forma de libertação. E o que senti nos quatro roteiros foi uma preocupação em trazer liberdade aos personagens. Mais interessante ainda foi observar que o elemento opressor em nenhum momento é exposto claramente.

Talvez seja exagerado afirmar que os vídeos serão gritos de liberdade, mas com certeza caminham nesse sentido. Acredito que os roteiros sigam uma característica desse início do século XXI, pois esses gritos não apontam para um sistema opressor específico ou se caracterizam como manifesto. São gritos que lançam dúvidas e o desafio de pensarmos sobre o que realmente está minimizando as interações mais harmoniosas entre as pessoas.

24 outubro 2010

Saindo do Pit Stop

A van do Marquês parou no Pit Stop em Interlagos, uma padaria em frente ao autódromo do S do Senna. Sentado ao balcão e me alimentando com um misto quente, observei em volta e vi algumas alegrias a base de cerveja numa noite que se esticava até ali, 7 da matina. É bom amanhecer na boemia. Ao mesmo tempo que eu conversava com a Vanessa sobre o bolsa familia, repassei na minha cabeça a aula que daria para os alunos das Oficinas Kinoforum no bairro do Grajaú logo mais. Na verdade eu estava ainda na dúvida qual primeiro curta exibiria para a turma.

Foi então que do outro lado do balcão vi uma distinta boemia, eles eram três homens, todos por volta dos 40, dois dividiam uma cerveja e um tomava suco de laranja. Comecei a perceber que aquilo me sugestionava várias histórias sobre a origem daqueles homens, todos estavam com rostos cansados e o assunto entre eles parecia sério, eles não sorriam. Fomos embora, os três continuaram no balcão e eu havia decidido qual filme exibir.

"Mirror" (Espelho), um curta dinamarquês sem diálogos e com uma precisa concepção de fotografia e som. Esse curta é um bom exemplo sobre a força da relação imagem e som sugestionando coisas, despertando o imaginário do espectador. Considero interessante começar a falar de cinema a partir dessas bases.

O debate que se deu depois da exibição do curta revelou aspectos interessantes da turma. Não houve estranhamento significativo em relação às imagens sombrias e pouco explicativas do filme, ninguém demonstrou a busca por um sentido único para aquela narrativa, e entre os que fizeram comentários, as imagens mexeram com algumas sensações e expectativas. Eles se deixaram envolver e isso era um ótimo início.

15 outubro 2010

Desabafo de um jovem na onda eleitoral

Abaixo segue um texto escrito por Bruno Rebequi:

"Desabafo de um jovem na onda eleitoral

Eu nasci no mar! Num Brasil mergulhado, afundado, foi onde nasci. Um lugar de profundas belezas e terras que esbanjam riquezas que há mais de quinhentos anos são ameaçadas pelo homem branco. E esse mar de ameaças, frustrações e medos tentou me engolir. Tentou engolir meus sonhos, minha gana de vitória, meu desejo por igualdade e liberdade, não fosse por uma onda muito grande que subia na ribanceira, hoje teria sido eu abortado! Uma onda que começou a se formar na década de sessenta e a crescer vertiginosamente na década de oitenta. Devo meu presente à esta onda.

Eu era uma criança, e via aquele homem barbudo, de voz rouca, gritando pelos trabalhadores, pela educação, pelo futuro. Eu, ingênuo, jamais teria imaginado que aquele senhor tão mal apresentado – perto de seus adversários engravatados – estivesse falando do meu futuro, aliás, não imaginei que toda aquela vontade expressa, dentre tantas formas, na de suor, fosse se materializar nos dias de hoje, na minha vida, em meu presente, nas minhas escolhas.

A onda que começou de uma base, até então explorada, cresceu, e aquele homem criticado por ser operário, por não ter experiência política, convenceu, se tornando o presidente com a maior aprovação da história deste mar em que nasci.
Incrivelmente, eu vivi ignorando isto! E como jovem revolto, acabei aderindo a ondas menores e que considerava mais contrárias (ou contrariadas), integrando, nas últimas eleições, a onda ecológica. Oras, eu só queria que o grito do macaco-aranha da Amazônia fosse ouvido e que o homem não desmatasse tanto! E não imaginei que a grande mídia usaria o meu sonho para colocar, mais uma vez, em risco, a soberania dos pobres.

Levamos quinhentos anos para sair, de verdade, da escravidão e agora que conseguimos nossa alforria por oito anos, os grandes nomes da nação (grandes em cifrões, mas pífios em quantidade de famílias) querem colocar-nos as rédias novamente? Iremos ignorar todos os dados a cerca do crescimento econômico e social brasileiro por conta de deturpações antiéticas da realidade, envolvendo nossas crenças, nossa subjetividade, nossa fé? O discurso político foi transformado em “midiatização de boataria” para agaranhar votos de maneira extremamente maquiavélica do povo que, bem intencionado, crê em Deus. E é justo, tudo isso?

Não. É extremamente ímpio esse jogo de poder em que o candidato assume mil caras que se contradizem a cada segundo e que precisam ser constantemente maquiadas pela indústria midiática, de forma a iludir o eleitor com promessas, promessas e mais promessas, todas elas já realizadas no passado, e jamais cumpridas. Precisamos acordar para o grande risco que o Brasil está correndo, para o grande perigo que as crianças de nosso país – as que nasceram e as que estão por nascer – podem ter que enfrentar. Em minha infância eu vi um homem barbudo gritando na TV, por trabalho digno, por educação e pelo futuro da nação, e graças ao seu governo, que aproximadamente criou doze novas universidades federais e ampliou outras quarenta e cinco já existentes, é que meu sonho pôde ser realizado.

Há a certeza de que muitos outros sonhos puderam ser realizados devido ao aproveitamento dos impostos que todos nós pagamos. Histórias envolvendo pessoas extremamente humildes que sobrevivem graças a programas de governo, muitas vezes sem nem se dar conta de que realizam seus sonhos por intermédio de atos políticos impulsionados pela forte vontade de homens e mulheres que lutam por justiça social sem usar o apelo religioso, a palavra de Deus, para ganhar popularidade, e, consequentemente, votos. Estamos revivendo o cabresto, mas dessa vez, um cabresto religioso, antiético, e, ironicamente, imoral.

Em prol do futuro das crianças que, talvez sem entender, hoje assistem ao careca engravato e “sereno” e à senhora valente, embravecida, é que precisamos impulsionar esta onda que, por um orgulho partidário justificável, foi batizada de “onda vermelha”, mas que ao meu ver, é, na verdade, uma onda de todas as cores, de todas as etnias, de todas as classes e de todos os cidadãos. Esta é a verdadeira onda da vida!"

Bruno Rebequi
Comunicador de verdades essenciais, por dois anos cursou Comunicação Social na Ufes, atualmente cursa o bacharelado em Composição Musical (Trilha Sonora)graças ao Reuni,programa do governo Lula/Dilma.

10 outubro 2010

Quando o trem passar

À frente de Joaquim está um viaduto. Quase uma da manhã, cidade vazia e seu carro está parado sobre aquela via que sobrevoa uma linha de trem. Joaquim sempre gostou de silêncio, e até a próxima passagem dos vagões que vinham do subúrbio ele desfrutaria de um silêncio para refletir melhor sobre si mesmo.

Dois meses antes, Vera e Joaquim viviam intensamente uma viagem em que percorreram mais de 4000km país afora. Joaquim possuía muito dinheiro e gastá-lo com uma mulher inteligente e 10 anos mais jovem parecia a realização de um sonho. Nada de ruim aconteceu durante aquela viagem, mas um fato que durou apenas cinco minutos estava sendo lembrado agora por Joaquim.

Em uma das cidades daquela viagem, Vera havia corrido por dois quarteirões, estava muito suada e não trouxera os cosméticos que havia ido comprar. Ela disse para Joaquim:

- Eu vi um homem ser atropelado.

Joaquim ficou calado. Ela parecia que ia desabar em lágrimas, mas apenas mirava profundamente nos olhos do parceiro aguardando uma resposta. Joaquim observou o suor que escorria pelo pescoço de Vera. Eles estavam na calçada de uma avenida, muito calor e fluxo intenso de carros e ônibus. Joaquim segurou Vera pela cintura e beijou os ombros dela lambendo todo o seu suor.

Vera não entendia aquilo e pediu que ele parasse. Assim que ele a soltou, Vera disse:

- Nunca mais desrespeite meus sentimentos.

Eles estão juntos até hoje e se entendem bem. Porém Joaquim está apaixonado por uma mulher chamada Sílvia e do outro lado do viaduto ele deverá comunicar isso a Vera.

A angústia toma conta de Joaquim enquanto embaixo do viaduto o trem produz um som ensurdecedor.

05 outubro 2010

Quando o Chile me afastou de Clarissa

Conheci um pouco mais sobre a revolução chilena feita por  Salvador Allende enquanto esteve no poder entre 1970 e 1973 através do livro "A Revolução Chilena", da coleção Revoluções do Século XX (editora Unesp) e escrito por Peter Winn. Foi uma experiência interessante. Ao longo das páginas fui vivenciando intensamente os momentos do 'Caminho Para o Socialismo' que Allende buscou estabelecer até a sua trágica morte.

Entre as muitas coisas que me despertaram diversas reflexões está  a sensibilidade perante uma experiência histórica. Como identificar que estamos em um processo histórico importante e que devemos realmente tomar cuidado com cada um de nossos passos? Maquiavel falava de prudência ('prudenzia' em italiano),  termo diferente do que conhecemos hoje e que consistia em uma característica de poucos, que conseguiam enxergar um pouco mais além e definir seus atos sem passos em falso, prudente não era saber evitar e sim saber agir. Mas como alcançar esse nível?


Um dos capítulos do livro é justamente 'vivendo a revolução', talvez  'viver' exija muito mais força de vontade e empenho do que 'fazer' a revolução. Um dia uma chilena chamada Esmeralda me disse que era um tempo em que eles estavam vivendo algo muito especial e não perceberam isso. Aqui eu aproximo a História de nossa percepção política.


Um dos pontos em 'viver a revolução' foi justamente a ação dos chilenos em acelerar todos os processos pensados para se alcançar o socialismo. Hoje, mais de 30 anos depois, consigo enxergar o quanto isso foi fatal para Allende, porém uma lição mais positiva é a vontade que um povo historicamente reprimido possuía em fazer valer o que considerava justo: igualdade social.


Como canalizar essa vontade? Novamente Maquiavel nos diz que para isso é necessário promover conflitos internos, duelos de posições, mas recomenda ele: que sejam promovidos com a finalidade única do bem comum, sem prejuízo à liberdade da pátria nem à ação de um agente externo. Mas isso não havia no Chile, de um lado uma classe média que pensava em seu próprio bem, do outro trabalhadores urbanos e rurais buscando seu espaço, para o bem comum, porém sem o devido debate com a classe média.


No meio estava Allende que buscou a todo custo equilibrar todos os conflitos, foi um negociador nato, mas não conseguiu segurar algo muito mais forte: os interesses dos EUA.


A política não se constrói com principes encantados, Allende não era um, assim como Lula nunca se destinou a ser. É preciso percebermos nossa trajetória histórica de um continente explorado e subjugado. E a partir dessa percepção reconhecermos os pequenos avanços que temos com propostas como foi a de Allende e então assumirmos o compromisso mais importante numa democracia: avançar ainda mais, não fugir da responsabilidade , irmos para o debate e construirmos instituições fortes que possam aos poucos promover a justiça social. É lento, não precisamos acelerar.


Me afastei de Clarissa durante três semanas, imerso nas páginas sobre a revolução de Allende, mas voltei à obra de Erico Veríssimo para junto de sua inspirada prosa enriquecer minha sensibilidade e cidadania.

02 outubro 2010

Belos cortes

Era o ano de 1994, o gerente da locadora em que eu trabalhava sugeriu que assistisse a um filme chamado   "Cães de Aluguel". No dia seguinte, cheguei para trabalhar extremamente entusiasmado com o que eu havia visto e falei para o gerente: eis o novo Scorsese!




A partir de então, o diretor desse filme, Quentin Tarantino, entrou em definitivo na minha lista de favoritos.

E o que me fez conectá-lo com Scorsese não foi somente o apuro nas cenas de violência, mas principalmente a montagem de Sally Menke. Uma das sequências que mais me impressiona até hoje em "Cães de Aluguel" é aquela em que Mr. Orange (Tim Roth) está sendo treinado por um agente negro para saber inventar e contar histórias de forma convincente, eis que entra a maestria de Menke. Ao longo dessa narrativa mesclam-se flash fowards com flash backs e bum... lá estamos divdindo a personalidade de Mr. Orange, entramos em sua essência através de uma contrução de cenas com ritmos e cortes precisos, considero uma das soluções mais magníficas para um vai e vem não linear.

Com tristeza recebi a notícia do falecimento de Menke no dia 27 de setembro, mas sua obra ficou. Com certeza junto com Thelma Schoonmaker, a fiel escudeira montadora de Scorsese, Sally Menke está no mais alto patamar da montagem no cinema.

Sally, nunca tive a oportunidade de te falar pessoalmente, mas tu és uma mulher de belos cortes. Au revoir.

28 setembro 2010

O suor em suas mãos

Lúcia estava correndo, suas pernas aceleravam em ruas escuras, a sua cidade parecia não ter mais fim, prédios, carros, mendigos, engravatados, tudo era cenário na sua desesperada corrida.

De repente ela percebeu que puxava alguém pela mão, era uma outra mulher de cabelos encaracolados cuja mão suava muito. Lúcia sentia que logo perderia o fôlego, mas seu instinto lhe fazia correr cada vez mais...


A mulher escorregou de suas mãos, ela se virou para tentar recuperá-la, mas viu aquela estranha desapercer em um buraco no meio do asfalto. Lúcia não queria se desesperar. Enxugou o suor da outra que ainda permanecia em sua mão e voltou a correr.


A cidade desapareceu.


Lúcia parou bruscamente, estava com medo.


Ouviu uma voz de criança: "Continue!"


Lúcia desabou no chão, sentiu um frio no corpo... teve a impressão de que nada lhe cercava... Andou para a esquerda e não encontrou limites... Suspeitou de ter encontrado o vazio que tanto procurava, a felicidade estava em seu corpo, pensou.


Mas um dia ela chorou, pois percebeu que a vazia vastidão ao seu redor havia chegado em seu coração.

15 setembro 2010

O Grito das Formigas



Chamou a minha atenção a inquietação da fé e a busca de algo sagrado capaz de aproximar o espírito de uma verdade interior que está presente no filme "O Grito das Formigas" (2006), do iraniano Mohsen Makhmalbaf. No enredo um homem e uma mulher recém-casados viajam pela Índia em uma jornada espiritual, ela extremamente religiosa e buscando um sentido para sua fé e ele um ateu que se põe à prova a medida que experimenta as intensas diversidades religiosas de um país.

O filme causou em mim reflexões sobre os contatos que temos com experiências espirituais, inclusive nas condições mais céticas possíveis. Acredito que não há necessidade de encontrarmos um sentido forte quando trabalhamos a própria espiritualidade, é possível termos um caminho a seguir, o qual se torna menos pedregoso quando aliviamos a carga. E como se desfazer dessa carga?

A obra de Makhmalbaf está longe de responder a essa pergunta, porém consegue dentro de uma narrativa sólida com imagens e situações construídas não pelo possível exotismo que um país como a Índia poderias nos oferecer, e sim pelos conflitos internos de seus personagens, a câmera navega pelos universos interiores a partir de uma exploração muito cuidadosa dos pontos de vista de cada um, o espectador é a todo momento convidado a sentir cada experiência. Não há respostas, há um filme provocador.


11 setembro 2010

Saquê número 1

Olhei para o casal de mãos dadas e pensei: na idade dele eu gostaria de ter ficado com uma garota como esta. Mas o que de fato me atraía na companheira daquele rapaz? Talvez ela reunisse todas as qualidades que admiro em uma mulher, não estou certo disso, já nem lembro dela tão bem assim... Quantos pensamentos confusos!

Isso me fez lembrar da primeira vez em que tomei Saquê.

Pouco mais de cinco da manhã de um dia no meio da semana. A moça de olhos graúdos e cabelos escuros curtos dançava freneticamente na pista. Muita cerveja na minha cabeça. Ao meu redor havia homens que desejavam mulheres, e mulheres que desejavam dinheiro.

Ela parou de dançar e fui em sua direção, eu lhe disse algo confuso, ela riu e me falou que os caras de uma mesa estavam pagando muito mais e que ela não podia ficar comigo ali. Dei de ombros e ela se afastou. Voltei a beber cerveja.

Novamente ela dançava na pista, não compreendo até hoje o porquê do meu desejo, talvez ali, há 13 anos atrás, ela reunisse todas as qualidades blá blá blá. Me aproximei novamente dela e perguntei se os caras ainda estavam pagando, sem parar de dançar e balançando freneticamente a cabeça, ela me respondeu que não e me deu o seu telefone dizendo: "me liga amanhã".

Treze horas depois eu liguei e ela atendeu, seu nome era Cláudia. Percebi que ela não lembrava de mim, mas conversamos por quase trinta minutos, marcamos um encontro no dia seguinte.

Passei na casa dela, Cláudia saiu eufórica e me arrastou para um restaurante japonês, onde ela pediu um prato e sugeriu que tomássemos saquê. Resolvi provar, nunca havia tomado. Veio a segunda dose. Conversamos, terceira dose, risadas. Pagamos a conta e na saída pegamos um táxi. Dentro do carro ela conseguiu falar muita coisa de sua vida, que hoje não lembro nada.

Chegamos num pequeno bar muito lotado, ela se sentou junto ao balcão e permaneceu calada, puxei alguns assuntos e apenas monossílabos da parte dela. O saquê me deixou um pouco alto e junto com a cerveja daquele apertado bar a vista começou a ficar turva. O silêncio de Cláudia me angustiou.

Nos despedimos às três da manhã. A lembrança que tenho são suas franzinas pernas descendo a calçada. Cláudia virou na esquina e sumiu.

05 setembro 2010

Disforme

No meio do salão de festas estava a última cadeira de um prédio abandonado. A jovem mulher de cabelos castanhos sabia que o seu vazio se encontrava muito além daquelas paredes frias e destruídas pelo tempo. A visita durou pouco menos de cinco minutos. Ela foi embora.

A incompreensão do próprio passado distorceu todas as lembranças. Uma confusão de todos os seus atos percorreu sua mente, parecia que nada lhe escapava e todos os seus erros mergulharam sua alma num poço de desespero.

Era preciso resistir.

Numa ilha distante ela se isolou e escreveu suas memórias.

Num sonho encontrou o beijo que sempre quis.

28 junho 2010

Herdeiro de escombros manauaras

Faz pouco mais de uma semana que terminei de ler o livo "Cinzas do Norte", de Milton Hatoum e somente agora tomei fôlego para iniciar uma nova leitura, o romance de Tolstoi chamado "A Sonata a Kreutzer".

Eu disse fôlego porque desde "O Lobo da Estepe", de Herman Hesse, um livro não me tocava tão profudamente quanto esse do Hatoum. A Manaus descrita ao longo das páginas me parecia tão próxima, apesar de que o livro termina exatamente quando eu comecei a ter a percepção do mundo ao redor, no início da minha infância. A sensação que me causou foi que herdei os escombros de uma cidade que foi definhando junto com o seu acelerado desenvolvimento. Foi uma sensação estranha, sem dúvida.

Quando eu era criança, no início dos anos 80, a cidade de Manaus quase parecia um lugar sem passado, se não fosse pelas histórias que minha mãe e minha vó me contavam, ou pelo que descobríamos a respeito da época da borracha, Manaus parecia estar começando do zero. Nesse período, a cidade não era nenhum exemplo de modernidade, mas através da Zona Franca e do seu extenso parque industrial, estava antenada com a tecnologia e as informações do mundo. Lembro que era uma época de esperanças.

Mas ao ler o livro de Hatoum, hoje enxergo que eram falsas esperanças, vivíamos nos escombros de um passado recente. A demolição do Cine Guarany em 1984 para a construção de um banco em formato de caixote simbolizou a limpeza completa desses escombros. Um tiro de misericórdia à memória da cidade. Ali Manaus e sua história capitulavam tal qual o trágico fim do personagem Mundo de "Cinzas do Norte".

Sem a consciência do próprio passado, acredito que não há espaço para esperanças, abre-se uma clareira para o aventureiro mais atroz, aquele sem vínculos com a própria cultura, e também para o forasteiro sem compromissos com a preservação mínima de uma terra que ele deseja dominar para prevalecer seu sucesso pessoal e financeiro. Assim enxergo a Manaus que herdei, onde morei até os 17 anos e visito quase todos os anos.

A luta de Mundo por sua arte e sua liberdade foi a batalha que a memória de Manaus não venceu. A derrota se disfarçou de progresso e riquezas, que realmente vieram, mas não mostraram nenhum humanismo e respeito ao mais simples: sensibilidade e identificação com o próprio chão que está cravado no coração da Amazônia.

(Sugestão de leitura: http://catadordepapeis.blogspot.com)

03 junho 2010

A partir da filosofia

Que filosofia é essa?
Ele se pergunta, apesar de que seus olhos não conseguem se desviar daqueles lábios que cospem a palavra “Platão” em diversas frases.
De repente, ele lembra de uma história platônica, mas fica sem graça de contá-la perante todos. Enquanto ele navega pelos lábios daquela filósofa moça, vamos mergulhar nessa lembrança.

Imagine um homem de meia idade, extremamente corcunda e com olhos caídos. Esse homem caminhava ao redor de uma lagoa, com um semblante concentrado em algum pensamento. O nosso admirador dos lábios da moça que conhece filosofia estava sentado num banco aguardando o intervalo de almoço se acabar e testemunhou a fenomenal queda do homem corcunda. Uma fina e estreita faixa de sangue escorreu pelo chão, o homem havia quebrado o nariz e com muita dificuldade conseguiu se sentar e tirar do bolso um pequeno lenço de pano que o usou para estancar o sangue.

Logo surgiu uma mulher para ajudar o homem corcunda e eis que entra a filosofia. Ela perguntou ao pobre homem de nariz quebrado se ele desejava ir para um pronto-socorro, ele respondeu que preferia ficar ali sangrando. Assustada, ela tentou levantá-lo, o corcunda forçou o próprio corpo para baixo, e o pequeno lenço de pano não dava mais conta do sangue que não parava de jorrar.

Depois de fazer muita força, a mulher, usando o bom senso, desistiu. Pareceu preparar um xingamento, mas evitou desperdiçá-lo naquela bizarra situação. Ela se afastou e ao passar ao lado do nosso admirador de mulheres que falam de filosofia, este lhe chamou a atenção sobre uma mancha de sangue na sua calça. Ela parou, observou e seus olhos visivelmente transmitiram todo o ódio do mundo.

O rosto do corcunda é uma máscara de sangue. A mulher da calça banhada de sangue se aproximou e começou a bater na corcunda do homem com a sua bolsa tiracolo. O homem rolava pelo chão, não tentava se defender, estranhamente. Sadismo e masoquismo à beira de uma lagoa.

E o que tem de platônico nisso tudo? A solidariedade daquela violenta mulher. Uma simples e fútil solidariedade, que no seu reino das idéias, uma ferida precisava ser curada. Para aquele homem rolando sob bolsadas estúpidas, a ferida precisava sangrar e não precisava de nenhum motivo para isso, era o Sangue em si. A mulher, com a sua ira, não compreendia, pelo menos naquele momento, o Bom nem o Justo.

Após alguns minutos, uns transeuntes afastaram a mulher de perto do homem sangrando, que preferiu continuar parado, dessa vez um pouco mais perto da margem da lagoa. Com um celular, o nosso admirador de lábios filosóficos tirou uma foto da mancha de sangue no chão.

No dia seguinte essa foto estava no seu blog com o título “Sangue Platônico”.

Pela moça que fala de filosofia, logo o fotógrafo de sangue se apaixona e se indaga se aquilo está no sinuoso terreno das idéias. Claro que não, aqueles lábios estão sorrindo e é impossível haver algo mais ideal e perfeito.

24 abril 2010

Cardápio abraçado

Os óculos poussuíam uma leve armação, e atrás deles se encontravam os olhos pequeninos e atentos de uma jovem franzina mulher abraçada com um cardápio.

Em frente ao restaurante onde trabalha, numa movimentada praça de alimentação, ela abordava os mais variados clientes, sempre com um discreto sorriso. Mas entre um cliente e outro ela parecia entrar num mundo próprio, seu olhar se perdia na multidão daquele lugar e em raras ocasiões seus lábios faziam um movimento como se desejasse narrar alguma coisa.

Mas qual mundo lhe pertencia?

Uma pequena trilha. O sol escaldante desce pelas copas das árvores. Um barulho de mar ao longe. Os ombros suados brilham e um suave perfume está na pele. Ela olha para os pés, um chinelinho barato e desgastado, mas incrivelmente confortável. O caminho parecia longo, mas agora falta pouco.

Um banho de mar. Águas calmas e vento no rosto. Sol forte, pele segura por um bronzeador na promoção. Ela olha para a praia e sua miopia desfoca um paraíso, ela sorri pois imagina que toda sua vida está atrás daquelas areias embaçadas.

As costas na areia. Ela fecha os olhos para adormecer, talvez sinta o desejo de um beijo, mas ela quer sonhar.

29 janeiro 2010

Tiradentes 27

Que dia lindo!
Sol, céu azul, sem chuva e uma noite de lua cheia que reverberou boas energias para a sessão ao ar livre de Tiradentes.

Senti que o mundo sorriu para a minha última jornada na cidade.

Antes de entrar nas profundezas dos curtas-metragens, o 27 foi aproveitado na companhia de bons amigos. A ótima oportunidade de reunir pessoas que a Mostra oferece nos traz a gratificação de bons papos com pessoas muito queridas.

Pouco antes do almoço, a minha vizinha Flávia, sua amiga e eu, ficamos conversando, entre muitos assuntos, sobre a Escola de San Antonio de Los Baños, em Cuba, onde elas se conheceram quando fizeram por lá um curso de dois meses. Elas comentaram as inúmeras dificuldades da escola e do país, que contrasta com a riqueza de conhecimento que ali se produz. Um conhecimento que, tanto para os cubanos, quanto para alguns alunos estrangeiros, se perde na vida prática, onde a difícil inserção no meio de trabalho audiovisual gera frustrações e joga por água abaixo fortes expectativas.

Contraste foi a palavra que me levou a refletir sobre o quanto ela é determinante e que nunca se ausenta, a essência de algo consistente pode sempre partir de um cruel contraste.

E de contrastes o Nordeste entende, Pernambuco e Ceará talvez estejam contrastando coisas bem interessantes nos curtas. Mais abaixo esse assunto voltará.

Naquele mesmo momento, a poucos metros da nossa mesa, subindo as escadas e entrando no auditório, era possível presenciar Gilberto Scarpa justificando sua não participação na mesa de debate que estava começando. Vestido com roupão branco, ali ele comenta que gravará uma entrevista para o seu programa de TV e se despede da platéia abrindo o seu roupão. Sunga de oncinha, eis a única peça de roupa por debaixo do roupão.

Almoço. Comida mineira, tutu na mesa. Ao redor da farta refeição estavam Marcio, Lara, Felipe Barros e eu. Barros expõe sua discussão interna sobre o contraste entre artes plásticas e cinema. Ele vem da primeira e tem circulado no segundo com seus vídeos e adquirindo seu espaço. Foi um papo agradável onde foi possível novamente perceber que certas diferenças poderiam ser diluídas a partir da aceitação delas.

Nem almoço, nem jantar. Nem noite, nem dia.
A roda de conversa é composta por um mineiro (Dellani, que pode ser também paraibano e cearense), uma mineira (Ana), um alagoano (Felipe), um cearense (Salomão), um amazonense (Diego) e um paulista (eu, mas dependendo do teu referencial podes me considerar amazonense ou colombiano). Contrastes expostos. Assuntos variados de cinema, artes plásticas e novos projetos. Percebi o quanto é bom questionarmos nossos papéis e funções nesse mundo.

Noite. Sessão ao ar livre. Lua cheia. Praça lotada.
Contrastes culturais, sociais, econômicos e atmosféricos tomaram conta da tela, o público se entusiasmou a cada filme. Após “Recife Frio”, último curta da praça, algumas pessoas à minha frente aplaudiram de pé, significativo pela força do encontro do curta-metragem com o público, fato que muitos já consideraram contraditório e hoje a única contradição é não levar esse formato ao maior número de pessoas possíveis.

No cinema da tenda, após as 23h, os contrastes em relacionamentos diversos. Era a última sessão de curtas que eu acompanharia na Mostra, o fim da jornada, e foi bem simbólico verificar que todos aqueles filmes de certa forma questionavam a tristeza de um fim. As coisas acabam. O mais importante é apreendermos a essência de cada uma delas, buscar nas diferenças e contrastes o que é capaz de amadurecermos nas nossas próximas relações. Pensamentos assim surgiram daqueles derradeiros curtas.

Ia comentar sobre o assunto em que Pernambuco e Ceará contrastam, mas sabe de uma coisa? Na verdade ali existem ótimos fazedores de filmes e que continuem tão diferentes como sempre foram.

Curtas vistos no dia 27:

DOIS MUNDOS (RJ)
Direção: THEREZA JESSOUROUN

C.E.A.S.A (PR)
Direção: Arnaldo Belotto

Os Inocentes (RJ)
Direção: Davi Kolb

AVACA (RJ)
Direção: Gustavo Rosa de Moura

Reverso (MA)
Direção: Francisco Colombo

O plano do cachorro (PB)
Direção: Arthur Lins e Ely Marques

Quarto de espera (RS)
Direção: Bruno Carboni e Davi Pretto

Bailão (SP)
Direção: Marcelo Caetano

Faço de mim o que quero (PE)
Direção: Sergio Oliveira, Petronio Lorena

Recife Frio (PE)
Direção: Kleber Mendonça Filho

Ensaio de Cinema (RJ)
Direção: Allan Ribeiro

Manassés (CE)
Direção: Luisa Marques

Lembro-me ainda de quando comíamos pão de mel toda manhã mas hoje acordei de ressaca (MG)
Direção: João Toledo

Pedra Bruta (SP)
Direção: Julia Zakia

O menino japonês (SP)
Direção: Caetano Gotardo

Ressaca (SP)
Direção: Rene Brasil

Um Par (SP)
Direção: Lara Lima

27 janeiro 2010

Tiradentes 26/27

O assunto era futebol. Em frente à sala de cinema, Tetê Mattos, Diego e eu conversávamos sobre o futebol carioca e a emocionante rodada final do brasileirão 2009. De repente um homem que bebia um guaraná pelo canudinho foi abordado por três policiais. Os guardas o revistaram por inteiro e quando terminaram o rosto do homem estava assustado e tentando compreender o que se passava ali. Depois foram todos para fora e depois de muita conversa dispersaram, o suspeito não era suspeito.

Enquanto observávamos esse acontecimento vozes mais altas ecoaram pelo local. Uma forte discussão acontecia entre dois homens com o pessoal do deixa disso apartando os furiosos para que não chegasse a nenhuma via de fato. Faltou pouco. O conteúdo do caloroso bate boca entre um diretor e um crítico foi que o primeiro ficou incomodado com o texto publicado pelo segundo num site, e aí foi aquele jogo de argumentações que traziam xingamentos de todos os lados.

Acalmaram-se os ânimos.

Não retornei ao assunto de futebol e o resto do dia foi tomado por mais curtas.

O dia 26 foi pulsante não somente entre policia, suspeitos, não suspeitos, diretores e críticos. A tela recebeu filmes que invadiram, no melhor dos sentidos, aspectos inquietantes e até perversos de um ser humano. Obviamente que não foram filmes monotemáticos, mas se aproximaram de uma coisa que me deixou curioso: somos de fato muito violentos?

A violência e a crueldade podem se manifestar de formas diversas, isso é um ponto pacífico, mas quando vejo que a criatividade de um diretor produz essas possibilidades violentas em pequenas coisas, como por exemplo uma chave jogada por debaixo da porta, aí percebo que o charme da violência não é produzir o choque e sim a sensação de que somos muito vulneráveis.

Violência e vulnerabilidade. Espero que não sejam as nossas características mais marcantes, mas espero que nunca possamos esquecê-las, principalmente para evitar que elas se manifestem da pior forma.

Primeiras horas do dia 27.
Festa, cerveja e amigos. Muito papo sobre cinema numa casa agradável no alto de uma ladeira.

Do lado de fora fiquei admirando o céu estelado ao som de Roberto Carlos.

Foi fácil esquecer de toda a nossa violência.


Os curtas do dia 26 que vi:

Coração (RJ)
Direção: Pedro Faissol

Valparaíso (RJ)
Direção: Diego Hoefel

Verão (CE)
Direção: Thiago Pedroso e Hiro Ishikawa

1976 (MG)
Direção: Carlosmagno Rodrigues e ALONSO PAFYEZE

Princípio da Incerteza (GO)
Direção: Cauê Brandão

EPOX (PE)
Direção: Sergio Oliveira

vista mar (CE)
Direção: pedro diogenes, rubioa mercia, rodrigo capistrano, glaugeane costa, henrique leão e victor furtado

Nego Fugido (BA)
Direção: Cláudio Marques e Marília Hughes Guerreiro

O FILME MAIS VIOLENTO DO MUNDO (MG)
Direção: Gilberto Scarpa

Laurita (SP)
Direção: Roney Freitas

Handebol (RJ)
Direção: Anita Rocha da Silveira

Sangre (MG)
Direção: Cris Ventura

Tauri (SP)
Direção: Marcio Miranda Perez

Tchau e Benção (PE)
Direção: Daniel Bandeira

Não me deixe em casa (PE)
Direção: Daniel Aragão

AS SOMBRAS (SP)
Direção: Juliana Rojas e Marco Dutra

26 janeiro 2010

Tiradentes 25/26

Cheguei em Tiradentes sob uma chuva extremamente torrencial no dia 25 de janeiro. No dia seguinte, Ana Bárbara, uma amiga paraibana, me informa que o janeiro de João Pessoa também está sob chuvas, fato muito raro. Há mais de um mês os noticiários mostram as diversas consequencias do aguaceiro sobre o país. Eis a lavagem do Brasil.

Pela luz dos curtas, o Brasil tem sido lavado de uma forma muito menos estranha e trágica. O muito bom da Mostra de Tiradentes é o encontro dos fazedores de curtas. As sessões do dia 25 trouxeram algumas experiências pertinentes, não somente pela abordagem dos temas e propostas, mas muito em função de uma aproximação dos realizadores com a vontade de filmar.

Ter vontade às vezes é frustrante pela ansiedade que gera, e acredito que ter a vontade de fazer um filme é muito encontrar uma relação intima com o seu objeto. Talvez isso se torne mais visível em documentários, mas considero que isso valha para qualquer filme. Daí passei quase todas as sessões buscando compreender quais relações íntimas estavam naqueles filmes e se houve em algum ponto do processo em que as frustrações poderiam jogar todo projeto fora.

Assisti a duas sessões e ambas traziam à tela filmes de aproximação com seus personagens, quase que forçando o espectador a participar de suas narrativas. E o movimento mais interessante de tudo isso me pareceu uma fuga do esquema "contar uma história" e mais próxima do "viver uma história". Não foram usados persoangens em situaçõs extremas, de vida ou morte, e sim de dúvidas e combate com suas próprias emoções.

Apesar de encontrar todos os fazedores fora da sala de cinema, nas ruas e bares, optei por não abordá-los com essas minhas questões. Prefiro conhecê-los através de papos de botequim. Nada melhor que uma noite de sono para amadurecer idéias.

O dia 26 trouxe o debate desses fazedores com o público, e ali cada um expos suas motivações e os conceitos norteadores dos seus filmes. Foi notório perceber que os processos foram vivenciar experiências de vida, alguns mais planejados e outros menos. O que me faz refletir que as relações intimas que eu buscava na verdade eram suas próprias dúvidas.

Os curtas eram dissertações que cada um encontrou para narrar um discurso cheio dessas dúvidas. Pude perceber que nenhum dos fazedores entrou no filme com a visão exata do seu resultado, porém com muita convicção e vontade para que esse resultado abrisse possibilidades acerca dos sentimentos e experiências de seus personagens.

O dia 26 está na metade e aguardo mais chuva. Chuva de dúvidas e incertezas.
Isso é muito emocionante.


filmes vistos do dia 25:

Bem-Vindo Guilherme
Direção: Dellani Lima & Rodrigo Lacerda, Jr

Perto de Casa
Direção: Sérgio Borges

sweet karolynne
Direção: Ana Bárbara Ramos

O Divino, De Repente
Direção: Fábio Yamaji

Guilherme de Brito
Direção: André Sampaio

As Corujas
Direção: Fred Benevides

98001075056
Direção: Felipe Barros

Fantasmas
Direção: André Novais Oliveira

MATRYOSHKA
Direção: SALOMÃO SANTANA

24º Domingo do Tempo Comum
Direção: daniel lentini

cadernos de viagem
Direção: Alex Lindolfo

Chapa
Direção: Thiago Ricarte

15 janeiro 2010

Psicodelia nas areias de Tamandaré


Janeiro de 2008, com o livro Ana Terra na mão, sento em uma das mesas do quiosque. Noite agradável, poucas pessoas em volta, céu estrelado, pé na areia e o barulho do mar relaxando a mente.

Era o meu primeiro dia em Tamandaré, uma pequena cidade com lindas praias no litoral pernambucano. Verifique um pouco nessas fotos: http://whinestrosa.blogspot.com/2008/04/ambulantemente.html

Eu estava viajando sozinho, descansando o corpo e refletindo sobre diversos assuntos e planejamentos para aquele ano que iniciava. Nesse espírito pedi um guaraná e depois uma Pitu, esta foi servida pelo dono do estabelecimento, chamado Marcos. Carioca de nascença, ele cresceu e morou em Jaguariúna, interior de São Paulo, onde recebeu o apelido de... carioca. Não muito antes de 2008, Marcos estava desgostoso com seu trabalho e nos rincões da Amazônia conheceu um cara que trabalhava no Ibama em Tamandaré, e após algumas palavras Marcos decidiu seu novo rumo. Juntou a família numa Kombi, saiu de Jaguariúna, subiu o país pelas estradas e montou o quiosque Submarino Amarelo nesse paraíso chamado Tamandaré.

Na conversa iniciada com a entrega da Pitu descobrimos um amigo em comum, Sidney Rodrigues, ator e que foi amigo de infância de Marcos. Não fico surpreso com coincidências, pois está mais do que provado que elas realmente acontecem, mas fquei feliz porque o Sidney é um camarada bem legal. Assim como o Marcos, que nos três dias que passei em Tamandaré trocava uma idéia com ele sobre assuntos diversos.

Dezembro de 2009. Volto a Tamandaré, acompanhado da Alethea, minha namorada/esposa, namorada porque nosso namoro não acabou, esposa para uma oficialidade dos 7 anos que estamos juntos. Chegamos à noite e a levo para o Submarino Amarelo, ampliado, charmosamente decorado com motivos dos Beatles, com mais funcionários, todos devidamente atenciosos, e a sempre simpatia de Marcos.

Ele ficou feliz de me ver e eu também, mais ainda em ver que o quiosque está cada vez mais agregado à beleza de Tamandaré e apesar de ser um submarino, sugiro ao leitor que embarque na mais atraente psicodelia e considere ali um porto, ancore-se com entusiasmo e desacelere seu cérebro, Marcos e sua turma são ótimos comandantes.

www.quiosquesubmarinoamarelo.com.br