20 fevereiro 2011

Perseguição

A calçada estava molhada, à sua frente um idoso em passos lentos com a coluna devidamente ereta e firme. Aquele homem possuía uma elegância.

Talvez sendo uns 50 anos mais nova que esse homem, ela resolveu segui-lo, pelo menos até o final da rua. Gostou da idéia de poder observar cada movimento do corpo do ancião.

Os dedos dele faziam leves gestos no ar, como se tocassem em algo muito macio. A jovem seguidora de velhinhos tentou imaginar quantas peles não haviam sido tocadas por ele. Mas ao mesmo tempo pensou por que sempre imaginamos que todos os anciãos possuem uma experiência muito maior que a nossa. Os anos de vida são a baliza?

Agora fixou seus olhos nos ombros, que estavam alinhados. Uma postura invejável. Veio à mente dela pesos, aqueles usados em balanças de antigamente. Mas nem sempre os pesos estão somente sobre os ombros. Uma vida custa outras sensações, sem dúvida.

O homem parou.

Ela sentiu um frio dentro de si. O que fazer? Ela precisava decidir rápido. Por algum motivo ela não compreendia como aquilo não fazia parte do seu plano. Mas que plano? A sua mente parecia ferver.

Resolveu ultrapassar o velho homem e foi embora sem olhar para trás.

Talvez um rosto jamais desse conta de explicar toda aquela confusão de pensamentos.

16 fevereiro 2011

Energias

Sim, era uma lanterna que ela tinha em suas mãos. O escuro a absorvia por todos os lados. E tudo que lhe restava era a duração das pilhas daquela lanterna.

Sem parar um instante sequer, ela continuou caminhando pelos indecisos caminhos da escuridão. A todo momento se perguntava por que tanta desconfiança em si mesma. Não conseguia ter resposta nenhuma, no fundo ela não se conhecia. Uma vida inteira longe de sua própria alma.

Ela começou a cantarolar uma bonita música. Gostou de pensar na possibilidade de forçar uma beleza mínima naquele caos em que vivia.

As pilhas chegaram ao fim de suas vidas úteis.

Não havia mais nada para ver. A cegueira forçada lhe impedia de caminhar. Muitos sinos tocaram e ela retomou a canção. Sua voz exprimia tristeza.

Sim, somos tristes.

Ela cantarolava a canção com uma voz miúda. Deixou os braços abertos para sentir o vazio em sua volta. Ela desistiu.

A consciência de sua distância perante tudo e todos lhe apertou o peito.

Sim, te desejo perto de mim, não me deixe na escuridão. Minha alma se iluminará ao seu lado.

08 fevereiro 2011

Nas entranhas da mente no balé e na piscina

Não foi dessa vez que Natalie Portman me fez ir ao psicólogo.

Em duas ocasiões anteriores ("O Profissional" e "Star Wars"), essa israelense, nascida em Jerusalem e criada em New York, me deixou pensando em coisas além filme e que são capazes de levar muita gente a buscar ajuda psiquiátrica. Em "Cisne Negro" fiquei preocupado, um amigo gay assistiu ao filme e se apaixonou por Portman, logo imaginei que ela havia preparado também algo para mim. Mas nada aconteceu.

Reconheço que Portman está muito bem no filme, mas para não fazer meus holofotes caírem somente nela, gostaria de comentar acerca de um dos pilares fundamentais de "Cisne Negro": a perfeição. A força do filme está na concepção visual dos emblemáticos distúrbios manifestados na mente debilitada de uma bailarina que busca a perfeição plena.

Compartilhar a trajetória da personagem de Portman no filme é muitas vezes sufocante. Como já feito anteriormente em suas obras, o diretor Darren Aronofsky nos coloca num desgovernado carrinho de montanha russa. A impressão que dá é que no início do filme estamos à beira de um precipício e logo alguém nos empurra ladeira abaixo e o abismo parece sem fim.

Hoje vivemos num mundo inteiramente midiático. O que vale no entretenimento é o espetáculo, é a possibilidade visual de vivermos uma experiência intensa. Ser aplaudida de pé com todas os louvores possíveis é um reconhecimento que faz valer todo e qualquer, mas qualquer mesmo, esforço de uma bailarina que busca a excelência. Sinto que o filme explora uma reflexão mais profunda sobre esses valores atuais do preciosismo perfeito na arte, no entretenimento e por que não, no esporte.

Pequim, Olímpiadas de 2008. Michael Phelps já era a lenda viva no Cubo D'água e na História dos jogos olímpicos. O mundo inteiro assistia à sua perfeita performance na piscina com as melhores imagens geradas para uma competição de natação, um espetáculo, sem dúvida. Quando ele disputou os 200m nado borboleta, chegou em primeiro, ganhou sua terceira ou quarta medalha e bateu recorde. Porém, assim que encostou a mão na borda da piscina, ele tirou seus óculos com toda a força, os arremessou na água e a sua expressão era de revolta em alto grau. Havia entrado água em seus óculos.

Phelps terminou a prova com o tempo de 1min52seg03 (recorde mundial), mas se não fosse a falha em seus óculos, ele teria atingido o que buscava, que era a marca de 1min51seg. Não é difícil imaginar que nos últimos 50 metros de piscina sua mente deveria estar produzindo tantos distúrbios quanto aqueles em volta de Natalie Portman durante sua apresentação final. A perfeição estava em jogo.

A partir dessa característica de "Cisne Negro", acredito que a arte, assim como o esporte, esteja superando algumas barreiras delicadas. A exigência de superação parece desumanizar e destruir bases emocionais necessárias para uma existência pacífica de um ser humano consigo mesmo. Talvez esse seja o caminho natural e pouco se possa fazer para evitá-lo, mas atenção e cuidado nunca são demais.

05 fevereiro 2011

Os gritos de uma mulher

Kika está no interior de seu quarto, o único de uma casa em um bairro distante. É uma madrugada fria, e deitada com os olhos bem abertos ela escuta os gritos de uma mulher. Esses gritos às vezes se misturam com um choro desesperador.

Na impossibilidade de adormecer, Kika se levanta e caminha em círculos pelo seu quarto. As frieiras de seus pés coçam ardidamente e seus olhos parecem carregar pesos insuportáveis. Mas ela está decidida a andar até cansar.

Kika foi uma criança com alguns problemas estranhos para enfrentar. Seus pais costumavam rezar muito e logicamente a obrigavam fazer isso também. Em uma de suas orações desconcentradas, ela sentiu um sussurro em seu ouvido, não conseguia entender muita coisa, apenas que a palavra 'sangue' se repetia várias vezes. A partir desse dia, todos os dias ela via alguém ensanguentado, era comum na escola, na rua e na TV. Até que uma vez seu pai matou um homem dentro de casa. Foi a última pessoa ensanguentada que ela viu.

Nunca saberemos se ver sangue é ou não um trauma para Kika, que parou de rezar aos quinze anos de idade.

O dia amanhece. Kika está estirada em sua cama. Os gritos e choros continuam. Com os olhos fixos no teto, Kika sente o desespero em seu coração.

02 fevereiro 2011

Fui a Somewhere e curti

Não sou um profundo admirador do trabalho de Sofia Coppola, reconheço que ela tem talento, sabe fazer as coisas, mas seus três primeiros filmes pouco me acrescentaram alguma coisa. Fiz questão de assistir ao “Somewhere” (Um Lugar Qualquer), quarto longo da diretora, que estreou recentemente em São Paulo, e saí bem satisfeito com o que vi.

Sem ter lido uma letra sequer sobre o filme, os 15 minutos iniciais me conquistaram fortemente, informações esparsas, mas precisas, do personagem principal, construíram ebulições enigmáticas. Não busquei compreender nada, apenas experimentar. Quando o primeiro diálogo surge e descubro a profissão do personagem, as coisas parecem fazer sentido, mas ainda estão nebulosas. E talvez esse seja o real sentimento do personagem perante a sua própria realidade. Daí em diante Sofia Coppola me cativou de vez e mergulhei sem medo no filme.

Curti bastante a interpretação de Stephen Dorf, seguro nas sutilezas de um personagem complexo. Complexidade medida através da indiferença manifestada por ele com as coisas que acontecem a sua volta. Por outro lado, ele não é apenas um entediado, talvez ele simplesmente não compreenda como aquilo tudo pode ter algum sentido. Há uma forte pressão interior para que ele seja indiferente, mas nem ele consegue se autodefinir para agir dessa maneira. É um personagem com nuances bem desenvolvidas pelo roteiro e pelas imagens construídas do filme.

Acredito que a diretora conseguiu harmonizar uma narrativa existencialista sem vitimização ou heroificação do personagem, características que, particularmente, senti e me incomodaram nos seus filmes anteriores. Em “Somewhere” há um humanismo para pensarmos sobre nós mesmo, e isso é muito bom!

01 fevereiro 2011

Tiradentes - Dia 1 Parte Dois

Ainda no meu primeiro dia participando da 14ª Mostra de Cinema de Tiradentes, saí da primeira sessão de curtas, jantei comida mineira e em seguida fui à praça central da cidade para assistir à Série 1 da Mostra Curtas na Praça. A sessão foi boa, filmes leves, mas com uma boa dose de consistência em suas narrativas e num diálogo muito bom com o público, que se divertiu e reagiu em praticamente todos os curtas.

Costumo ficar na dúvida se curto ou não sessões ao ar livre, pois sou muito fã de sala fechada, escura, som vindo de todos os lados e aquela imersão completa no filme. Mas considero toda iniciativa de exibição de filmes sempre válida e essa sessão de Tiradentes foi bem interessante para observar a interação do público. As reações foram as mais diversas possíveis, mas uma me chamou a atenção.

Ao meu lado havia uma senhora que estava com dois netos, um menino e uma menina. O primeiro praticamente não viu nenhum filme, ficava correndo pra lá e pra cá, a menina ficou quietinha vendo atentamente todos os curtas. Durante o filme “Traz Outro Amigo Também”, sobre um detetive que vai descobrir o paradeiro de um amigo imaginário da infância de um velhinho, a senhora passou a projeção inteira tentando acertar qual seria a cena seguinte, o curioso é que em algumas ela acertou. Isso me incomodou de início, mas depois percebi o quanto aquele filme estava sendo um exercício de imaginação pra ela, assim como o detetive do filme, que precisou de muita imaginação pra resolver o seu caso. No final da sessão, enquanto rolavam os créditos do último filme, a senhora se levantou e puxou a neta, que resistiu um pouco, pois seus olhos ainda estavam colados na tela. Boquiaberta, a menina parecia não querer sair do universo daquela sessão.

De lá corri diretamente para o Cine Tenda para outra sessão de curtas, a Série 1 da Mostra Foco. E aqui retomo a questão sobre observar, principalmente em relação ao primeiro e ao último filme da série. A sessão começou com o documentário “Retrato de Suzana”, dirigido por Leonardo Amaral e Lygia Santos. É um curta que acompanha um dia de trabalho da cabeleireira Suzana, a câmera inicia na saída de sua casa para o salão de beleza e lá ficamos até o anoitecer quando Suzana e suas amigas têm aula de pintura. Durante todo o filme, a minha questão principal era buscar apreender se aquela proposta de observação dos diretores me transmitia algo ou não.

A câmera flerta com certo voyeurismo, mas acredito não ser essa a intenção, percebi mais um sentido em nos fazer absorver o ambiente de trabalho de uma pessoa comum e interagirmos com a simplicidade apresentada. Porém não consegui um envolvimento pleno, as imagens pareciam um registro pela registro, senti falta de uma melhor elaboração dos enquadramentos. Por outro lado reconheço que os diretores arriscaram positivamente, a edição flui bem e há um esforço significativo para nos inserir no salão de Suzana e compartilhar algo.

Quanto ao último curta da sessão, “O Sarcófago”, de Daniel Lisboa, a sensação foi inteiramente contrária. Já assisti a esse filme algumas vezes e fiz questão de revê-lo, pois sinto que a proposta do diretor em documentar o personagem Jayme Figura, um artista que anda pelas ruas de Salvador com indumentárias nada convencionais e recicladas a partir de todo o tipo de material, vai além de uma observação simples e direta. A impressão que me passa a todo instante é o lançamento de um jogo, no qual o espectador precisa experimentar cada cena para avançar na narrativa. É um curta que te convida a vivenciá-lo, sejam quais forem as conseqüências para cada um.

Talvez seja esse o peso do ato de observar, podemos sim ir além, e isso através de uma experimentação da observação, vivenciá-la a partir de nossas bases de conceitos e pensamentos, e assim percebermos algumas inquietações ou não dos elementos observados. Esse primeiro dia me jogou nas entranhas da necessidade de interação com as próprias vivências, acredito que possamos crescer com isso.