19 janeiro 2011

Nhamundá/AM

Em 2001 conheci um cara que tinha sido da marinha e serviu em Manaus por um tempo, lá se juntou com uma amazonense, largou a marinha e comprou um barco. Nessa época ele trabalhava para um alemão que passava seis meses no Amazonas gravando para fazer documentários para circularem em TV européias. Nos outros seis meses do ano, o barco e o equipamento de câmerado alemão ficava com esse camarada que eu conheci.

Como um legitimo marinheiro e barqueiro, ele conhecia bem os rios do Amazonas e numa de nossas conversas ele comentou que conheceu o lago do Espelho da Lua, que ficava junto ao rio Nhamundá, cuja beleza ele ressaltou com propriedade. Afirmou que era uma região que precisava ser conhecida.

Desde então sempre tive a vontade de conhecer o rio Nhamundá.

Eu havia lido a respeito do lago Espelho da Lua numa pesquisa que fiz sobre as indias guerreiras que atacaram os espanhóis quando estes navegaram pela primeira vez pelo rio que conhecemos hoje como Rio Amazonas. Essas índias, fora o relato dos espanhóis e de alguns indios prisioneiros deles, nunca foram vistas por mais ninguém, mas eram cercadas de lendas.

Francisco Orellana, o explorador espanhol que as enfrentou, chamou essas guerreiras de Amazonas, não porque estivessem a cavalo, mas como referência às míticas guerreiras gregas da antiguidade, que tiravam um dos seios para melhor empunhar um arco de flechas.

Amazonas vem do grego, 'mazo' seria seio, 'a-mazo' seria não seio ou sem seio, daí o termo 'amazona'.

E segundo consta, esse confronto de onde sairia o nome do maior rio do mundo, aconteceu nas proximidades do rio Nhamundá, o qual deságua no rio Amazonas. Conforme o relato dos índios presos por Orellana, essas índias guerreiras eram de uma tribo poderosa que não admitia homens, as únicas aproximações eram apenas com intuito de reprodução uma vez ao ano, e ainda acrescentou que as crianças de sexo masculino quando nasciam eram doadas ou sacrificadas. Elas tinham o costume de se banhar num lago chamado Espelho da Lua, onde tiravam de seu leito pequenos amuletos esverdeados com formato de sapo em sua maioria, que eram conhecidos como muiraquitãs.

Janeiro de 2011, fui conhecer o rio Nhamundá.

Lago Espelho da Lua:



Pois é, sou muito ruim para tirar autoretrato.

Mas como eu cheguei a esse recanto das Amazonas?

Eu estava de férias em Manaus e resolvi fazer uma viagem pelo rio Amazonas. Escolhi ir a Parintins, cidade conhecida pela festa de Boi Bumbá que acontece em junho. Parintins fica às margens do rio Amazonas, próxima ao rio Nhamundá, e este faz a divisa do estado do Amazonas com o Pará. Portanto fui com o forte intuito de chegar até o Espelho da Lua.

Em Parintins, conheci Trindade, que é irmã de uma colega de trabalho da minha mãe. Falei para Trindade que eu planejava ir conhecer o rio Nhamundá e também o Espelho da Lua, logo ela me informou que tem uma outra irmã que mora na cidade de Nhamundá e que junto com o marido poderiam me ajudar. Peguei uma lancha em Parintins e de lá rumei à Nhamundá, que é uma charmosa ilha cercada pelo rio de mesmo nome.

Nhamundá:





Como cheguei em Nhamundá:
De Parintins tem lancha que sai diariamente. Em janeiro de 2011 o valor da passagem foi de R$ 40,00.
Para se informar sobre horários e tarifas, o melhor é ir diretamente ao porto e perguntar. Não há um balcão de informações nem site, precisa ser no boca a boca ou então checar junto a algum morador de Parintins.
Em janeiro de 2011, o porto de Parintins estava em reforma, então os barcos atracavam na beira atrás do mercado central. Quando as reformas estiverem concluídas, parece que o porto estará em melhores condições para atender passageiros e turistas.
A duração da viagem até Nhamundá depende do nível do rio. Como estive no período de início das cheias, a viagem durou 2h30min. Em época de cheias, a viagem dura aproximadamente 1 hora. Na época de seca/vazante, a viagem pode durar até 5 horas.
Tudo isso porque para cada época do ano, a lancha segue uma rota diferente.
Também existem barcos que saem de Manaus/AM e de Santarém/PA. Essas viagens são mais longas e as informações são encontradas nos portos de cada cidade.
Para voltar à Parintins é preciso verificar o horário da lancha junto aos moradores de Nhamundá. Existe um serviço de mototáxi que entrega a passagem à domicílio e no dia seguinte leva a pessoa até a lancha, cobrando apenas o valor da passagem.

Assim que cheguei à Nhamundá fui recebido por Francisco Brilhante, cunhado de Trindade. Brilhante, como é conhecido, chegou em Nhamundá há mais de 20 anos e hoje é proprietário de uma drogaria e uma lan house. Ele também é muito ligado à área da saude e desenvolve um projeto social bem interessante que leva periodicamente médicos de diversas especialidades para Nhamundá e também montou um laboratório para análises clínicas essenciais. No período que estive em Nhamundá foram muito boas as conversas com Brilhante, conversamos sobre assuntos diversos. Ele acredita no potencial turístico da cidade, que a partir de uma infra-estrutura básica pode ser um forte elemento econômico para Nhamundá.

Para se hospedar em Nhamundá existem algumas pousadas, são simples, mas confortáveis e com ar condicionado. Fiquei numa localizada em cima do Supermercado Mateus, cujos donos possuem essa pousada. Quarto amplo, frigobar, TV, ar condicionado e café da manhã. Paguei R$ 30,00 pela diária.

Ruas de Nhamundá:






A cidade é bem agradável, urbanizada e hospitaleira. A estrutura para turismo ainda é muito pequena, para informações e qualquer passeio é necessário ter a colaboração de algum morador local.

O rio Nhamundá faz a divisa entre os estados do Amazonas e do Pará. Como Nhamundá é uma ilha, um de seus lados dá de frente paro o estado do Pará. A cidade paraense mais próxima é Faro, que visitei no dia seguinte à minha chegada. Uma curiosidade: o Pará segue o horário de Brasília, com a exceção do período do horário de verão, dessa forma, Faro está 1 hora a frente de Nhamundá.

Para comer há poucas opções de restaurantes. À noite, o que é comum são as bancas de churrasquinho, montadas nas ruas ou nas próprias casas de moradores. Em geral os churrasquinhos tem acompanhamentos diversos e se tornam uma verdadeira refeição.

Bancos: tem o Bradesco e clientes da Caixa Econômica Federal podem utilizar as lotéricas.

Internet: a cidade possui várias lan houses.

Os veículos mais utilizados na cidade são a moto e a bicicleta. Nhamundá é uma ilha e é possível cruzar a cidade a pé, sem muitos problemas, inclusive recomendo pois é uma ótima cidade para caminhadas.

Conversei com o Brilhante sobre a minha vontade de passear pelo rio Nhamundá e conhecer o lago Espelho da Lua. Ele me indicou o seu Eurico, um senhor que possui uma rabeta e que conhece muito bem toda a região. A rabeta seria o transporte mais barato para fazer tal percurso. A outra opção seria ir de voadeira, mas o consumo de gasolina seria maior, representando mais gasto. Como eu estava sozinho, sem ninguém para dividir as despesas, realmente eu precisava de algo mais viável.

Para se ter uma idéia de valores em termos de duração da viagem até o Espelho da Lua e o gasto com combustível:
Voadeira: 2h30min - R$200,00
Rabeta: 5h - R$60,00
(Vale observar que são valores em janeiro de 2011)

A diferença entre uma rabeta e uma voadeira está no motor, o da segunda é muito mais potente.

O Brilhante e o seu Eurico montaram o roteiro da viagem:
-Saída pela manhã de Nhamundá por volta das 8h.
-Viajar até a serra do Espelho da Lua
-Na serra se hospedar na casa do seu Brito, conhecido como Britinho.
-Na serra conhecer o lago Espelho da Lua e subir até a antena da Alcoa, que lá está instalada.
-Dormir na propriedade do Britinho.
-No dia seguinte seguir viagem e conhecer duas comunidades na entrada do rio Paratucu.
-Voltar para Nhamundá por volta do meio dia.

A sugestão do rio Paratucu foi dada por eles, pois dizem que é uma região cuja beleza impressiona tanto quanto o rio Nhamundá.

Fundamental foi a compra de suprimentos para a viagem: rancho (conservas, leite, chocolate, farinha, biscoitos, açúcar, água e refrigetante), uma capa de chuva, um plástico preto grosso para cobrir as coisas pessoais na rabeta, pois esta não era coberta, e gelo. Fora isso o Brilhante me arrumou uma rede, lençol e um isopor para colocarmos o gelo. Sugiro também não esquecer de levar protetor solar, repelente e medicamentos para urgência e primeiros socorros.

Acordei no dia seguinte, me encontrei com o seu Eurico na casa do Brilhante e partimos rio Nhamundá adentro. Após quase dez anos, iniciei uma viagem que sempre quis fazer.

Saímos de Nhamundá por volta das 9h da manhã.

Seu Eurico, o barqueiro:


Rio Nhamundá:




Rio Nhamundá. Do lado esquerdo é o estado do Amazonas, do lado direito é o estado do Pará:



Nessa época do ano, as margens do rio Nhamundá estão repletas de praias. Na época das cheias, muitas delas somem:




No meio da viagem paramos em uma das margens do lado paraense. Abaixo seguem as fotos. A experiência é indescritivel. Um silêncio não silencioso com o barulho da água do rio e o som dos pássaros em volta. Tudo a fazer é olhar ao redor, sentir a floresta amazônica em sua essência e abrir o coração.

(A praia e a rabeta de nossa viagem)





Novamente um tosco autoretrato, garanto que é o último.

Por volta das 13h30min chegamos à serra do Espelho:


Seu Eurico atracou a rabeta e fomos ao encontro do seu Britinho que estava deitado em uma rede. Logo começamos uma boa conversa. Britinho tem muitas histórias de encantos e lendas, ele viveu a vida inteira no meio da selva. Ali na serra ele vive com a esposa e filhos em uma casa sem luz elétrica nem água encanada. Os filhos estudam em escolas localizadas nas comunidades próximas.

O Britinho me contou que em frente à serra, do outro lado do rio, é que ficava a aldeia de mulheres, as lendárias 'amazonas', e que elas vinham tomar banho no lago do lado de cá da margem.

Após a conversa seguimos ao lago do Espelho da Lua:


Pra mim foi muito especial conhecer o Espelho da Lua, parecia que eu fechava um ciclo, não sei explicar. Sentamos às margens do lago e ficamos conversando. Aquele verde em volta e os ruídos da floresta me descansavam o cérebro.

Após a visita ao lago, voltamos para a casa e almoçamos. Depois da comida descansamos um pouco e em seguida subimos a serra até chegar na antena.

Toda essa região do rio Nhamundá está sob proteção do Ibama. Segundo Britinho, a região também abriga muitas riquezas como ouro e esmeraldas, mas ainda estão intocáveis e não por acaso ele diz receber a visita de muita gente do mundo inteiro, muitos deles chegam com aparelhos e vasculham a região fazendo medições.

Outra riqueza presente no solo e a olhos vistos é a bauxita. A Alcoa, que já explora esse minério na divisa do Pará com o Amazonas, tem olhos grandes sobre aquela terra, mas não pode fazer nada, apenas colocou uma antena no alto da serra para facilitar a comunicação entre seus trabalhadores na Amazônia. Britinho está ali para manter o acesso à antena e também para cuidar da serra evitando apropriações e desmatamentos indevidos.

Vista do rio Nhamundá a partir do alto da serra:



Anoiteceu.

Era noite de lua cheia:


Seu Eurico e eu dormimos do lado de fora embaixo de uma cobertura de palha. Montamos nossas redes e ali encostamos. No meio da noite, Britinho veio até nós e nos contou novas histórias. Tanto ele quanto seu Eurico já passaram dias sozinhos na selva, pernoitando em barracas improvisadas ou até mesmo no chão encostados em árvores.

Entre as inúmeras histórias que eles contaram, estão aquelas em que eles encontraram objetos perdidos no meio da selva. Em geral objetos que claramente mostravam que naquele local onde estavam, já havia sido uma aldeia. Seu Eurico contou que uma vez ele e uns amigos encontraram um vaso com duas abas enterrado no chão. Os amigos quiseram arrancar o vaso do solo, mas ele estava meio receoso e sugeriu que fizessem isso na volta, o grupo estava na mata coletando copaíba. Quando voltaram, não encontraram mais o lugar do vaso, segundo Eurico, eles foram encatados pelos espíritos da selva que fizeram sumir o vaso, ou o mudaram de lugar.

Britinho contou uma vez que ele estava dormindo na selva e em sonho vieram mulheres e lhe cantaram três músicas. Ele as guardou e uma delas acabou se tornando uma toada do boi Garantido, de Parintins. Ambos contam que à noite na selva se escuta de tudo: gritos, vozes, ruídos, choros e até tiros. São os encantos e espíritos da floresta. O mais interessante de observar é que eles contam tudo isso com um respeito à floresta, como um lugar que tem uma força e que não pode ser subestimada.

Enfim, a hora de dormir. As carapanãs (mosquitos) não deram trégua, cobri o corpo inteiro com o lenço, mas impossível pegar no sono com o zumbido que elas faziam no pé do ouvido. Por volta de meia noite caiu um temporal, uma tempestade muito forte com raios e trovões. As carapanãs sumiram. Aproveitei e com a cabeça para fora do lençol fiquei observando aquele espetáculo de chuva. a cobertura de palha aguentou firme, nenhum gota em cima de nós. Britinho até perguntou se queriamos entrar para a casa dele, mas resolvemos ficar.

Adormeci.

Acordei por volta das 7h, havíamos combinado de ir cedo para as comunidades do rio Paratucu. Quando olhei para os meus braços eu tomei um susto, parecia que eu estava com sarampo, todo cheio de pontinhos vermelhos, as carapanãs não perdoaram. Mas curiosamente essas picadas não coçavam nem ardiam.

Levantei da rede e eis a paisagem à minha frente:


Fiquei por um bom tempo olhando para essa paisagem, com uma certa meditação e um fortalecimento da minha espiritualidade.

Tomamos um café da manhã e em seguida nos despedimos de Britinho e sua família. Abaixo ele de costas caminhando às márgens do rio Nhamundá, prefiro ter esse registro do Britinho, integrado à essa natureza dos encantos de suas histórias.


Seguimos a viagem.
Assim que saimos da serra do Espelho fomos acompanhados por botos, que pulavam um pouco a frente da rabeta.

Infelizmente não chegamos a entrar no rio Paratucu, pois o tempo estava muito instável e o seu Eurico recomendou que voltássemos antes do meio dia para Nhamundá. Mas fomos até uma comunidade chamada Castanhal, localizada no encontro dos rios Paratucu e Nhamundá.

Comunidade Castanhal:


Nessa comunidade visitamos a líder do local, que é uma das moradoras mais antigas. Conversamos com ela e o marido por um tempo antes de darmos uma volta pelo lugar. Eles moram sozinhos, pois todos os filhos (se não me engano são quatro) estão em Parintins ou em Manaus, quase todos haviam feito universidade e estavam bem encaminhados na vida.

Abixo foto da vista da comunidade. À esquerda o rio Nhamundá segue entrando na selva e vai até quase perto da Guiana. À direita está a entrada do rio Paratucu.


Por volta das 11h entramos na rabeta e seguimos de volta para Nhamundá.
A viagem de volta foi tranquila e um pouco mais cansativa. Paramos para almoçar numa praia, dessa vez do lado do Amazonas.
Nuvens carregadas nos acompanharam por boa parte da viagem, mas apenas quando estávamos bem perto de Nhamundá que ela caiu forte sobre nós. E bem forte. Seu Eurico segurou firme o manche da rabeta e chegamos sem problemas por volta das 15h.

No dia seguinte voltei para Parintins e levei comigo ótimas recordações da minha passagem por Nhamundá, fiz bons amigos, relaxei a mente e tive um contato com a floresta como jamais havia tido.

No final da tarde dei uma volta pela cidade para me despedir num por do sol às margens do rio Nhamundá:

3 comentários:

Ana disse...

Lindo relato William! Eu, que cresci andando de barco, voadeira e rabeta pelos rios e lagos do amazonas, fiquei tocada com o relato, e com muita saudade daquela época da minha vida. Espero um dia poder voltar, e quem sabe, descrever isso em relatos assim.
Um abraço, fica na paz.

Ricardo Soares disse...

Cara tu é ninja eu so acostumado a viajar pelo norte mas o que tu fez é uma verdadeira aventura.

http://aventurasamazonia.blogspot.com/

Unknown disse...

Adorei a riqueza de detalhes...estou planejando conhecer Nhamumda.