23 março 2013

Reencontro

Rita tentava explicar a origem do seu nome. A sua bisavó havia segurado a onda da família, pois ficara viúva aos 23 anos de idade. De qualquer forma, para Rita era bonito levar o nome de uma guerreira. A sua interlocutora era uma moça com a mesma idade: 20 anos.

Elas haviam se conhecido numa festa em Barcelona promovida por estudantes brasileiros. Ambas eram turistas na cidade. Conversaram a noite inteira e se identificaram em muitos aspectos.

Nesse reencontro algo estava no ar. Rita se sentiu confusa com o distanciamento de sua amiga. Se bem que na verdade, a pergunta era se aquela jovem de cabelos tingidos era de fato sua amiga.

O bar estava lotado, o que de certa forma excitava Rita.

Depois da bisavó, Rita falou de sua avó e por fim falou de sua mãe. A desconfiança que ela depositava na mãe era extrema, ela não conseguia nenhum canal de comunicação. As duas pareciam inimigas, apesar de terem tido poucos conflitos. Rita desabafou que no fundo não admirava sua mãe.

A outra moça ficou se perguntando por que a necessidade de tanta exposição da vida pessoal. E mais, o que será que se perdeu na travessia do Atlântico, Rita deixara de ser uma pessoa atraente.

A nostalgia é traiçoeira. Seria muito mais interessante Rita ser apenas uma instigante pessoa conhecida numa festa perdida em Barcelona. Agora era possível ver que não havia necessidade de ser mais do que isso.

Cada vez mais a necessidade de reencontro se torna apenas um bom motivo para nos decepcionarmos com as pessoas, desacreditarmos em nossas heroínas. Os mitos não se perdem na travessia de um oceano, pensou a moça com cabelos tingidos, os mitos se perdem na vida comum.

22 março 2013

Compreensão e marcha

A primeira vez que li “O Manifesto do Partido Comunista”, de Karl Marx e Friederich Engels, foi antes do meu início na militância do PC do B. Era o início dos anos 90, ser comunista parecia ser a coisa mais anacrônica de todos os tempos...

Mas cresci com a minha mãe se declarando uma simpatizante do comunismo e não uma comunista de fato, cresci com ela dizendo que um homem como Fidel Castro só nasce a cada cem anos, cresci com ela me mostrando o que é justiça social, comentando que em sociedades comunistas os valores à educação e cultura são primordiais, cresci com ela falando de Olga Benário e me contextualizando as músicas de Chico Buarque. Em 1982, quando eu tinha 7 anos de idade, ela me levou para ver a vitória de um governador do PMDB numa importante avenida de Manaus, durante a eleição ela havia deixado bem claro que o oponente do PDS fazia parte da inimiga ditadura, a redemocratização engatinhava e o meu Flamengo era o melhor time do mundo.

Sim, eu fui politicamente influenciado, apesar de nunca ter visto minha mãe militando nas fileiras de algum partido ou recebendo visitas de comunistas.

Um ano antes da queda do muro de Berlin, numa viagem de férias à Natal (RN), comprei uma biografia do Che Guevara no aeroporto de Manaus, fiquei encantado com a trajetória desse revolucionário e na capital potiguar comprei uma camisa com o rosto do Che (sim, eu também tive uma camisa dessas, mas foi a única) e com os dizeres “Um dia voltarei e serei milhões”. Considerei isso bem profético e me considerei dentro desses milhões da camiseta.

Caiu o muro de Berlin, o Collor foi eleito, me mudei para São Paulo, não fui um cara pintada, o Collor saiu, Itamar entrou, FHC também, plano real, bla bla bla. Entre o fim de 93 e início de 94, retiro emprestado na biblioteca do Centro Cultural São Paulo um exemplar do “Manifesto”. Eu havia decidido que pra fazer parte daquela frase profética da camiseta eu precisava ler e estudar antes, pois uma coisa que minha mãe também me dizia era que um comunista antes de tudo era um estudioso, uma pessoa culta e que não discutia com qualquer um, pois sua sabedoria era superior. Resolvi começar pelo começo.

Lembro que minhas primeiras impressões da leitura haviam sido de compreensão, enfim eu pude ter acesso a certos conceitos que me pareciam nebulosos, o principal foi compreender o significado de luta de classes. Em seguida, compreender o conceito de burguesia, sua função histórica e seu papel na luta de classes. E por fim o caráter revolucionário para se alcançar o socialismo, a necessidade de um processo de revolução e alcançar o poder. O curioso é que depois disso, mesmo com meus poucos conhecimentos, uma compreensão maior sobre a revolução de outubro e as revoluções cubana e chinesa me deram uma dimensão dos desafios de um processo revolucionário.

Deixei de frequentar o PC do B por mais de dez anos e recentemente voltei, e a partir de um encontro da célula da cultura do Distrital Centro para um debate acerca de “O Manifesto do Partido Comunista”, e por considerar desafiante a ação política nos dias atuais, trago aqui uma reflexão pessoal sobre duas passagens desse livro. A primeira diz:

“teoricamente, [os comunistas] têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário”.

Considero que essa afirmação sobre a compreensão do movimento proletário também lança sobre os comunistas uma de suas principais responsabilidades, que é ser um conhecedor da História, incluindo a do seu próprio tempo, e mais, conhecer não somente os fatos, mas também como as relações na sociedade se estabelecem nos diversos meios e circunstâncias. Nos dias de hoje, a nitidez da compreensão, na minha opinião, parte de não isolarmos, em um círculo fechado e intransigente, as nossas ideias e convicções acerca do que é necessário para o caminho ao socialismo, a marcha precisa cada vez mais ser construída com uma imersão nas problemáticas dos dias de hoje, e um ponto que considero abalado é o sentimento e conceito de cidadania. Por meio de um individualismo agressivo, cuja gênese está no consumismo sem freios como modo de vida, as relações entre as pessoas se afastam de uma percepção acerca do bem comum, do viver em coletividade e, o que considero mais triste, lutar por transformações a favor de uma realidade mais justa para esse coletivo.

Quando iniciei minha militância no PC do B em 1995, numa época que para muitos é conhecida como o fim das ideologias, o que amadureci no partido foi a real compreensão da política. Ali, por meio de estudos e debates, verifiquei o compromisso de um partido não somente a favor dos trabalhadores, mas também com a construção do socialismo. Lembro da lúcida compreensão de que esse socialismo no Brasil somente poderia se dar perante as próprias características desse país, sem a adoção de um modelo, apenas com uma avaliação clara e eficiente das experiências socialistas até então.

O que desejo ilustrar é que com a militância partidária pude identificar a importância de um partido na marcha citada no trecho citado do “Manifesto” e o seu papel como vanguarda. Para isso foi fundamental para essa minha compreensão o livro “Que Fazer?” de Lenin, que até hoje é meu livro de cabeceira. Fui verificando que muito mais que a revolução, que talvez eu jamais vivenciaria, o importante naquele momento (e ainda hoje) era ajudar no fortalecimento do partido, auxiliar nesse compromisso de vanguarda.

Sou cético quanto à possibilidade de presenciar a experiência de uma revolução socialista no Brasil, até mesmo por conta de uma avaliação pessoal que eu tenho, positiva até certo ponto, do nosso processo democrático, o que pode levar a outro texto em breve. Porém, parto do princípio que a marcha precisa ser em direção a essa revolução. Eis que volto à atenção que chamei para não nos fecharmos nos próprios círculos. O avanço parte de uma aproximação para debatermos junto aos mais diversos segmentos da sociedade sobre o papel da cidadania nos dias de hoje.

Se o partido é uma vanguarda, o desfaio se faz atualmente para muito além da conscientização de classe, há uma necessidade urgente de conscientização cidadã e republicana. Refiro-me à conscientização por parte da sociedade dos valores das instituições democráticas, uma consciência capaz de marchar contra o câncer chamado corrupção, que abala os eleitores, que gera neles um sentimento de desconfiança quase constante, que gera neles um sentimento de descaso. Sugiro abrirmos com força o debate acerca da reforma política. Acredito que seria um passo importante para destacarmos no seio da sociedade, a sua principal arma: a responsabilidade de seu próprio voto.

A segunda passagem:

“Quando se fala de ideias que revolucionam uma sociedade inteira, isto quer dizer que, no seio da sociedade velha, se formaram os elementos de uma nova sociedade e que a dissolução das velhas ideias marcha de par com a dissolução das antigas condições de vida. [...] quando, no século XVIII, as ideias cristãs cederam lugar às ideias racionalistas, a sociedade feudal travava sua batalha decisiva contra a burguesia então revolucionária. As ideias de liberdade religiosa e de liberdade de consciência não fizeram mais que proclamar o império da livre concorrência no domínio do conhecimento.”

As ideias racionalistas citadas no texto se referem à herança iluminista, que promoveu a hegemonia do conhecimento e do progresso sobre o misticismo religioso e a metafísica. A partir daí temos, como ilustra o “Manifesto”, o “império da livre concorrência no domínio do conhecimento”, uma ação exclusivista que pautou o capitalismo mais feroz ao longo do século XX em nome da liberdade. Liberdade é outra palavra que precisamos cuidar tanto quanto cidadania.

Aqui lanço um pensamento para avaliarmos as premissas do Iluminismo e suas consequências perante a evolução do capital. Um texto de Kant chamado “Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento [Aufklärung]” se torna pontual, nele há uma ode a um futuro iluminado pelo avanço do pensamento, onde o acesso às potencialidades do conhecimento poderiam sim trazer uma perspectiva a um novo homem. Pelo que pudemos perceber, o capital se apropriou disso para tornar seus procedimentos mais liberais e assim prezar por uma liberdade que no fundo se tornou opressora.

Marx e Engels identificaram isso no nascedouro, e hoje acredito que tal passagem possa ser revisitada para termos um diálogo franco com as questões de nosso século, onde a tecnologia não pode nos intimidar, precisamos celebrar o seu avanço, mas repensá-la para um contexto humanista e de uma sociedade justa. A liberdade a partir do conhecimento pensada em conexão com a cidadania. Que um cidadão possa saber do lugar que ocupa numa sociedade, que seus anseios possam superar a esfera individualista e serem direcionados para uma ação edificadora.

Retomo o termo ‘marcha’ do “Manifesto” para compreendermos nosso papel nessa longa trajetória a nossa frente, cada passo precisa ser firme, e ele precisa ter essa firmeza no sentido de fortalecimento do partido, compreendido como vanguarda, e precisa ser revolucionário, no sentido de que não caminhamos com armas de fogo e sim com o esclarecimento não somente para nós mesmos, mas primordialmente para uma sociedade que precisa ser desperta para o seu compromisso de cidadania.