30 dezembro 2013

Rita

O ônibus parou em frente a uma drogaria, ela desceu junto com outras mulheres, todas pelo menos vinte anos mais velhas que ela. Eram dez pra sete da manhã, e a medida que as senhoras se espalhavam pelas ruas ao seu redor, Rita pensou consigo mesma que todas poderiam ser domésticas nos apartamentos bacanas da região e lembrou de sua mãe.

Aquele bairro de São Paulo também lhe trazia outras recordações, havia namorado um cara bem mais velho que ela e que trabalhava numa videolocadora na rua de trás daquela drogaria; na época, com menos de 18, sempre desconfiava que era ali que o cara comprava as camisinhas de suas transas, e por conta disso nunca entrara ali pois tinha certeza que seria reconhecida pelos funcionários que logicamente estariam a par de sua vida sexual. Rita riu.

Tudo era passado. O bairro se transformou assim como a sua própria vida.

Rita entrou na drogaria e passeou pelo setor de escovas de dentes. Ficou parada em frente das gôndolas, pegou na mão um ou dois modelos de escova porém não escolheu nenhum. Em seguida fez a mesma coisa com os shampoos. Entre escovas de dentes e shampoos ocupou quase uma hora de seu tempo. Rita chegou a pensar se aquilo chamara a atenção dos funcionários e da segurança, mas dane-se, ela tinha certeza de que ela mesma não era uma ameaça e isso bastava.

Ao sair e caminhar pelas ruas do bairro Rita sentiu vontade de chorar, havia saído de casa após uma longa noite de insônia e considerando que aquilo seria um passeio, mas no fundo buscava algo de seu passado, mesmo que fosse uma lembrança simples, de um namorado sem importância. E foi aí que encontrou a chave para o vazio que lhe fazia chorar, dera importância a algo sem importância, fugia de suas aflições verdadeiras.

Faltava pouco para as nove, era preciso ir trabalhar, resolver problemas cotidianos.

Já dentro do ônibus postou uma foto da drogaria no facebook e escreveu: isso me lembra boas trepadas e nada mais.

26 dezembro 2013

46 anos

46 anos.
Ela olha seu corpo nu no espelho de seu quarto. Não concorda com o que vê, mas sente libido. Tem vontade de desejo e perversão.
É seu aniversário, daqui a pouco uma comemoração divertida com as amigas, sem perversão alguma, mas quem sabe se no bar surgem olhos libidinosos de um homem que transformem algo em mais coisas... São amigas que ficam, que a compreendem. Sem roupa alguma no corpo, ela não sabe avaliar o peso daquelas amizades. O importante é que neste momento elas lhe estendem um ouvido, amigas que dão risadas das mesmas piadas.
Escolhe a calcinha mais adequada e se veste por inteira. Ela não quer chorar naquela noite, a vida inteira chorou em seus aniversários, ops, a vida inteira não, mas com certeza desde os seus 20 anos.

26 anos.
Flávia sempre achou estranho fazer aniversário no mesmo dia que sua mãe. Há três anos que não se falam, Flávia mudou de cidade e busca sua própria autonomia. Ela acha que a mãe envelheceu rápido demais.
É 26 de dezembro, uma data vazia como a considera Flávia, nem natal nem ano novo, mas no fundo, que importancia tem tudo isso? Ao seu redor ninguém sabe do seu aniversário, na verdade ninguém liga a mínima para o que ela pode significar nesse mundo.
Flávia diz pra si mesmo que está feliz naquele dia. Espera que o cartão enviado pelo correio chegue o quanto antes na casa de sua mãe.

O ano acaba e um novo começo virá... Flávia e sua mãe têm certeza disso, apesar de não esperarem somente felicidades.

19 dezembro 2013

Muito além de um chester.

Boa parte da população clama por melhor educação no Brasil, a educação é vista como a solução de todos os nossos males sociais, econômicos e históricos. Concordo, porém não entrarei aqui nas linhas mais duras e delicadas dessa questão, que considero que vai além de ser um discurso quase uníssono, o objetivo aqui é repassar a indignação de uma professora do estado do Amazonas, que com certeza lança mais lenha na fogueira sobre o debate de qual 'melhor educação' estamos querendo.

M. adora dar aulas de química orgânica aos seus alunos

Fim de ano.

2013 chega ao fim e a secretaria de educação do estado do Amazonas, conhecida como Seduc, presenteia todos os professores com chesters para que os educadores possam desfrutá-los nas ceias e confraternizações das 'boas festas'. Porém, a distribuição é feita por escola e não por uma lista geral de todos os professores da rede, assim alguns educadores aparecem em mais de uma lista do benefício, uma vez que dão aulas em diversas escolas.

M., professora há quase quarenta anos, recebe dois chesters, não questiona a duplicidade do presente natalino, pois se seu nome estava nas duas listas, obviamente ela acreditou que isso era uma determinação da própria Seduc. Porém a diretora de uma das escolas em que M. leciona, resolveu fazer uma investigação, por dias telefonou para outros professores amigos de M. assim como para a diretora da outra escola, sorrateiramente buscou saber se M. havia recebido duas unidades do chester da Seduc.

Numa manhã, na sala dos professores, a diretora detetive se aproximou de M. e lhe deu uma lição de moral na frente de outros docentes, informando que não era correto uma professora ficar com dois chesters, não foi uma conversa, foi uma bronca humilhante. M. devolveu os dois chesters no dia seguinte às escolas, a indignação pela humilhação e despreparo da diretora da escola em abordá-la foi realmente triste.

M. tentou explicar que não agiu de má fé, não sabia da limitação de apenas um chester por professor, descobriu casos semelhantes de professores que também passaram pela mesma situação e foram levados a devolver. Ela cita ainda que alguns de seus colegas que estavam presentes na bronca que ela levou, também haviam recebido duas unidades, porém sem a investigação da diretora.

M. ficou muito triste. O chester não lhe faz a menor falta, o que lhe faz falta é um reconhecimento adequado de sua profissão. Quase todos que gritam por uma melhor educação, conhecem as condições precárias de trabalho dos professores das redes públicas de ensino. E hoje a dificuldade não é somente material.

M. relata o que vê nos celulares de seus alunos com menos de 16 anos, brigas, sexo, maconha, videos e fotos com traficantes. M. comenta sobre a dificuldade em fazer um aluno com menos de 16 anos valorizar o ensino que está lhe sendo oferecido. M. fala de seu esforço diário em motivar alunos com problemas diversos, os quais sempre esbarrados na esfera econômica e social, resultado de todas as nossas desigualdades e injustiças sociais.

Mais triste ainda é verificar a insensibilidade de nossos gestores. A propaganda de que a gestão pública é legal com a entrega de chester contrasta com a ineficiência de organização interna, da inabilidade de uma diretora de escola em contornar o erro institucional. Tudo que os alunos de M. precisam superar diariamente por conta de um ensino precário se estabelece na insensibilidade da gestão, da diretora, da Educação (sim, com E maiúsculo).

Paremos de ser hipócritas e repetir discursos comuns, busquemos uma sociedade mais fraterna, que a educação não passe por excelência de ensino somente, mas por humanismo nas relações. Paremos de achar que Coréia do Sul e meia dúzia de países que espoliaram o mundo são referências para a nossa educação, busquemos as referencias no nosso próprio estômago faminto, pois assim compreenderemos melhor as injustiças sociais e impulsionaremos a humanização para além do individualismo e do nefasto caráter meritório da cultura capitalista decadente em nossas peles.

“É porque podemos transformar o mundo, que estamos com ele e com outros. Não teríamos ultrapassado o nível de pura adaptação ao mundo se não tivéssemos alcançado a possibilidade de, pensando a própria adaptação, nos servir dela para programar a transformação.” (Paulo Freire)

18 dezembro 2013

Navegantes - Programa 4

Quando: 21 de dezembro de 2013
Onde: Editora FiloCzar - Rua Durval Guerra de Azevedo, 511 Pq. Sto. Antônio (São Paulo/SP)
Horário: 19h
Para saber mais sobre o Navegantes clique aqui.

"A Distração de Ivan', de Cavi Borges e Gustavo Melo

"SÉCULO"
MG / 11 minutos / 2011
Dir: Marcos Pimentel
Sinopse: Conosco, o amor. Entre nós, o tempo.

"A DISTRAÇÃO DE IVAN"
RJ / 15 minutos / 2009
Dir: Cavi Borges, Gustavo Melo
Sinopse: Ivan é um menino de 11 anos. Ele vive com a avó no subúrbio do Rio de Janeiro. Em meio ao seu cotidiano de brincadeiras e brigas com os amigos, ele vai amadurecer.

"A CASA DOS MORTOS"
DF /  24 minutos / 2009
Dir: Debora Diniz
Sinopse: Jaime, Antônio e Almerindo são homens anônimos, considerados perigosos para a vida social, cujo castigo será a tragédia do suicídio, o ciclo interminável de internações, ou a sobrevivência em prisão perpétua nas casas dos mortos.

02 dezembro 2013

Torre entre as pedras

Os pés descalços caminham pelo piso gelado da cozinha, o esmalte de suas unhas está corroído e ela sabe que sua preocupação com a própria vaidade tem sido quase nula nas últimas semanas, a exceção é a sua boca, que pode contar com um batom quase sempre.

Estranhamente ela encontra quatro pedras sobre a mesa, são pequenas, escuras e leves. Como é que foram parar ali? Pergunta a si mesma. Decide levá-las para a sala, havia pensado em jogá-las fora, mas acredita que podem combinar com a torre eiffel que uma amiga lhe trouxe, apesar dela detestar esse tipo de lembrancinhas de viagem.

A pequena torre eiffel de plástico fica soterrada pelas pedrinhas, como naqueles filmes apocalípticos. Ela ri, gosta da sua invenção, pois enxerga um sentido naquela composição de objetos. Enfim, é o sentido que a sua vida está tomando, alterar as ordens das coisas, desestagnar-se.

Mas será que ela está seguindo à risca esse rumo? Ela reconhece que coisas muito mais importantes que a decoração de sua casa precisam ser reordenadas. Não sentir a obrigação de ter um namorado é uma delas, o amor precisa ser repensado, apesar de que muitos acreditam que ele precisa ser redefinido. Quantos rês! Ao sorrir para a torre entre as pedras, ela conclui que não deseja se redefinir, apenas tirar algumas coisas da ordem.

Jogados ao lado do sofá estão papéis que precisam ser lidos para que assuntos avancem no escritório onde trabalha. Ela começa a rasgar folha por folha como se aquilo fosse terapêutico. De frente para o amontoado de papéis rasgados, ela começa a chorar. Acredita que mergulhou numa loucura, sente medo. Liga para uma amiga. "Por que você não faz uma viagem?", pergunta a amiga no esforço de aliviar a situação e recebe como resposta um 'como você é tola!'

Desprezando seu medo, ela quer que sua loucura seja mais profunda e procura mais pedras pela casa.