23 dezembro 2009

Jacaré com pimenta

Tempo nublado em João Pessoa, a charmosa capital paraibana, e às margens de um rio o dia termina cercado por uma brisa que transmite muita paz ao mesmo tempo que vemos ao longe nuvens negras de fumaças e o laranja das colunas de fogo nas plantações de cana.

E é ao lado desse rio, cercado de barracas que servem comidinhas regionais, que encontramos Sílvio, o Sílvio da Pimenta, da pimenta Sabor da Paraíba, marca criada por ele para a sua fabricação caseira-industrial de molhos de pimenta; se não me falha a memória, são oito funcionários em sua pequena empresa, todos parentes.

Sem bigode ele veio de São Luiz, no Maranhão, se instalou em terras paraibanas e com fornecedores devidamente bem escolhidos produz pimentas que curam.

Curam por diversos motivos como pode ser visto no cartaz de sua barraca, a qual está inserida na moderindade consumista pois permite aos clientes o pagamaento com cartão. O fator antioxidante do produto é o que chama mais atenção, a força em retardar ou impedir que o envelhecimento nos chegue com antecedência é o carro chefe de sua bem humorada propaganda.

O humor e a versatilidade em contar histórias curandeiras transformam Sílvio em um cara peculiar, pois, segundo ele, serão os efeitos dos seus molhos de pimenta que o levarão a uma ascensão empreendedora.

Empreendedorismo que o Sebrae solicitou que ele expusesse após uma palestra do sempre internado vice José de Alencar, mas Sílvio cobrou o equiavelente a dois dias de seu trabalho na produção dos molhos, pois falar a futuros bem ou mal sucedidos microempresários lhe afastaria de sua principal renda. O Sebrae não topou o valor.

A sua barraca é o seu centro do mundo, ele pode enviar, por correio, para todos os cantos do país, mas atendimento pessoal, só ali, ao lado de uma estátua canhestra de um Jacaré, que não saboreia a pimenta de Sílvio mas compatilha toda sua desenvoltura em fazer convencer de que a pimenta Sabor da Paraíba pode sim levar a uma vida saudável os mais diversos organismos que se aventuram em despejá-la sobre seus alimentos.

Sílvio, apesar de ser expansivo em suas demosntrações, cada um que prova sua pimenta logo é aliviado com um refresco de cor amarela estrategicamente preparado para suavizar o paladar dos menos preparados, ainda é um coadjuvante entre as atrações das margens do Rio Jacaré, mas tem o sempre bom elemento sonhador.

Particularmente gosto de cruzar com pessoas assim pelo caminho, mesmo sem gostar de pimenta e procurar outras fontes atioxidantes.

22 dezembro 2009

Psicodelia à vista: em paz com o jacaré, Capitão Gancho sorri para o mundo

O que significa sorrir para o mundo?

Ter a causa ganha?
Levar a vida num sossego absoluto e chamá-la de mais ou menos?
Ou ainda, ser o humilde capitão de um barco em águas calmas?

Estamos de frente para um paraíso chamado Praia dos Carneiros, no litoral pernambucano, até que um moreno homem de estatura mediana e com um boné de listras azuis e brancas se aproxima e se apresenta como Capitão Gancho, o responsável por um prazeiroso passeio ao redor da praia cujo trajeto incluía piscinas naturais nos arrecifes, banhos em um banco de areia, argila para rejuvenescer a pele, visita a uma igreja do século XVIII e conhecer um jacaré.

O barco zarpa, e possuidor de duas mãos em perfeito estado, o gancho do capitão está nos dedos de seus pés, que conduzem a manivela do motor de popa.

O passeio nos faz sentir que ali é o centro do mundo, e o nosso Capitão, assim como o algoz homônimo da Terra do Nunca, amendontra seus pequenos passageiros com leves sustos ou pegadinhas, e sempre avisando que em breve veremos o jacaré sem deixar de ressaltar que não poderíamos, em hipótese alguma, passar a mão sobre o réptil.

E o sorriso do Capitão Gancho é largo, todo esticado para nos mostrar que ali a sua causa é ganha, como não cansa de nos informar. Me chamando de comandante ele faz questão de mostrar cada pedaço daquela natureza que para ele é uma dádiva, considerada por alguns outros piratas como a terceira melhor praia do Brasil, o que ele discorda com muita facilidade, pois em sua convicta percepção é a primeira, sem dúvida.

Damos a meia volta logo após o marco da batalha entre portugueses e holandeses, na qual os lusitanos levaram a melhor, e o Capitão estica a coluna e nos diz para nos prepararmos para ver o jacaré, chegou o momento.

Ele aponta e o jacaré surge diante de nossos olhos, gigantesco, como se tivesse viajado desde a Terra do Nunca para ser companheiro desse Capitão Gancho nessa nossa viagem. Ele é imenso e sua boca está aberta, não para nos engolir, mas para saudar tudo em volta.

Abrimos nossos sorrisos, pois o que parecia ser mais uma brincadeira do Gancho, era na verdade a mais séria forma de se divertir. Lembre-se de Peter Pan que fez seus amiguinhos voarem com a força da imaginação. Assim é que se descobre os centros mais belos do mundo como Carneiros.

A últiima parada na pequena igreja construída entre os coqueiros foi espiritual, uma reza de agradecimento e conciliação.

A viagem terminou, mas sorrir para o mundo sempre será uma constante, assim nos ensinou o Capitão Gancho, que pode estar longe da Terra do Nunca, mas não do seu jacaré que de boca aberta não o engole, apenas sorri junto com ele.

Psicodelia à vista: bem ali perto de Carneiros está ancorado o Submarino Amarelo.

14 dezembro 2009

Rio próximo

É necessário olhar o rio de frente!
A sensação é nítida, Manaus vira as costas para o Rio Negro.

Nos últimos dois anos visitei a cidade em cinco ocasiões e foi possível perceber que Manaus está cada vez mais abandonada, feia, suja, caótica e violenta. Sei que isso não é nenhuma novidade quando se trata de uma grande cidade brasileira, mas gostaria de falar sobre isso em torno da relação da Manaus com o Rio Negro.

Morei em Manaus até os 17 anos e o rio sempre estava associado ao lazer, na verdade aos raros lazeres, pois não frequentava a praia da Ponta Negra e os passeios de barco eram bem escassos. Com a exceção de um ano, todo esse período foi vivido em bairros afastados do rio. O meu relacionamento com as águas escuras do Rio Negro era distante.

Um outro fator curioso é que enquanto criança não fui educado para olhar para o rio, entendê-lo como parte importante da cidade e me orgulhar desse gigante espetáculo da natureza. Não lembro uma vez sequer do Rio Negro ser objeto de algum tipo de assunto. Vivi uma infância urbana em meio ao asfalto, concreto e bairros pouco arborizados, apesar de me encontrar no coração da selva amazônica.

Será que eu era uma exceção entre muitas crianças?

Não sei...

Quando se navega pelo Rio Negro margeando a cidade de Manaus, percebe-se uma ofensa. Nenhum plano urbano para a orla, são construções improvisadas, sujeira e alguns estaleiros.

É uma cidade inteira de costas.

O desenvolvimento urbano de Manaus está custando muito caro, é uma das cidades com maior movimentação de dinheiro no país, investimentos crescem a cada ano e os olhos internacionais sempre muito atentos a tudo que ali acontece, mas a noção de convívio social adequado não consta em nenhuma das pautas. A maioria das pessoas vive mal, se transporta pessimamente e não possui nenhum refresco visual, apesar das recentes iniciativas de parques e espaços culturais. Acredito que falta agregar mais valor ao sentimento do manaura por sua cidade.

Um sentimento que não parta do ufanismo e sim para valorizar o espaço público, assim como a natureza serviu de alicerce para Gaudí conceber todas as suas obras, ela também poderia ter sua harmonia respirada dentro dos limites urbanos de Manaus.

Que as obras para a copa do mundo não sejam as únicas esperanças de melhorias na urbanização da cidade, e que os olhos se voltem para o rio, pois ele é tão humano quanto nós com a riqueza de nossas nuances. Ele seca, depois enche, depois seca só um pouquinho, enche de novo...

13 dezembro 2009

Sequelas

Identifico a importância de um filme com as sequelas que ele provoca em cada espectador, principalmente quando as dubiedades e incertezas se concretizam como os elementos chave. Ontem, 12 de dezembro de 2009, vivi uma maratona Woody Allen assistindo aos filmes Desconstruindo Harry, Tiros na Boradway e Setembro, da qual saí com uma vontade de externar algumas percepções.

Longe de buscar uma unidade entre os três filmes, refleti sobre a participação de nós mesmos em nossos objetivos pessoais. O desejo de ser único e ter a sua personalidade reconhecida é comum no mais comum dos homens, a partir daí podem surgir verdadeiras sagas em busca do mais nobre reconhecimento. Em função de que?

Quando ao fim de sua trajetória, o personagem principal de Tiros na Broadway conclui que não é um artista após tentar se firmar como tal ao longo de todo o filme, talvez ele lance um desafio presente nas duas outras obras de Allen, até que ponto devemos insistir em ciar algo ou superar certos limites?

A busca por certezas e afirmações consome uma energia considerável e acredito que talvez seja mais desafiador pisar em terrenos mais misteriosos. Os três filmes me fizeram pensar sobre isso, pois apesar de personagens bem desenhados e extremamente consistentes dentro das narrativas dos filmes, todas suas histórias de vida parecem ricas em incertezas.

Quando a dificuldade do escritor Harry, em Desconstruindo Harry, se concentra na sua relação com os próprios personagens, pois todos têm sua gênese na realidade, os significados da criação parecem se perder completamente, pois as complexidades das pessoas não conseguem ultrapassar os limites entre ficção e realidade. E são essas complexidades que Allen nos apresenta sem julgá-las ou defini-las, cada personagem é para cada espectador um poço de questões.

Em 2009, tive duas idéias para a realização de documentário, porém não levei a cabo nenhuma delas, apesar de um envolvimento intenso com cada assunto, um deles, inclusive, faz parte de leituras quase diárias. Não acredito que são projetos totalmente arquivados, mas hoje os vejo como assuntos pessoais e que a minha própria investigação em cima de cada um deles me favorece para amadurecer as minhas concepções sobre os mesmos.

Um amdurecimento que pude apreender ao assistir Setembro, pois as complexas relações entre os personagens e suas dificuldades de superação exemplificam de forma mais crua as peripécias pelas quais passam os personagens de Harry e Tiros na Broadway. A casa de campo representa um confinamento pessoal que exige de cada um a verdade sobre si mesmo. Eis aí a minha sequela.

Não sou exigente comigo mesmo, mas às vezes caio num terreno murado por todos os lados e fico horas e dias na tentativa de pular esse muro. Descobri então que tenho que evitar a queda nesse terreno, pois a criação e a satisfação pessoal se encontram num terreno superior, sem muros e limites, mas precisamos ter cuidado para não dar o passo em falso.

05 dezembro 2009

Londrina, meia-noite

Estava no banco ao fundo do ônibus, desceria no metrô Clínicas e do lado de fora, após uma gigantesca nuvem negra cobrir o céu paulistano, despencava uma torrencial chuva que não somente iria fazer a metrópole parar com engarrafamentos colossais como também deixaria um saldo de 6 mortos nas manchetes dos jornais do dia seguinte.

Meu destino: A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, com projeção em 35mm no CCBB.

Desci do ônibus numa parada próxima à entrada do metrô. Apertado entre outros cidadãos que esperavam seus coletivos divaguei se corria ou não à estação. O relógio do celular me informou que eu deveria correr.

Corri.

Resultado: Encharcado.

Naveguei pelos túneis do metropolitano com a camisa grudada no corpo, mas com a certeza de que em minutos estaria frente a frente com um dos meus top 5 de Allen. Desembarquei no metrô São Bento e com um guarda-chuva de cinco reais comprado ali mesmo, percorri as calçadas do centro de São Paulo e com a úmida roupa me sentei na poltrona do cinema. A sessão atrasara e o meu atraso não me fez perder nenhum fotograma.

A Rosa Púpura do Cairo tem pra mim um valor sentimental muito forte por dois motivos, o primeiro pela sua esplêndida valorização dessa relação do cinema com nossos imaginários, a imersão em mundos que nos completam de certa forma. Quando criança, por tantas vezes desejei que a princesa Leia saisse das telas para os meus braços e por outras tantas desejei que eu entrasse na tela para ser um jedi nos braços dela. Woody Allen soube com maestria traduzir tudo isso. O segundo motivo tem a ver com Sigourney Weaver, mas aí o relato será num texto em breve, visite sempre o Tyler Durden Fora do Caos.

Assistir ao filme pela primeira vez em película me fez perceber algo muito interessante, as cenas em preto e branco que se referem ao filme do personagem rebelde são extremamente vivas, um nítido contraponto à realidade marrom e escura da protagonista chamada Cecília (Mia Farrow). É uma luz que talvez nosso mundo real não consegue apreender. É poeticamente rica a cena final em que Cecília ressuscita seus ânimos com essa luz que vem da tela.

Guarda-chuva aberto, cidade parada, e caminhei até minha casa atravessando a Sé e o bairro da Liberdade refletindo sobre o filme e outras coisas, foi bem agradável.

Deixei a mochila em casa e resolvi também deixar o guarda-chuva, parti para mais uma missão cinematográfica e novamente molhei a camisa no trajeto até o metrô.

Cheguei sem muitos problemas na abertura da Retrospectiva do Cinema Brasileiro no CineSESC e assisti ao doc Crítico, de Kleber Mendonça Filho. Bons depoimentos, edição eficiente e o filme traz uma curiosa investigação em torno do universo de crítica cinematográfica.

Foi um dia de caos urbano em São Paulo e fui dormir com vários pensamentos, busquei reuni-los no que costumo expressar como experiência cinematográfica. A sala escura e a luz rebatida te envolvem de um tal modo que a duração de um filme é o espaço dessa experiência única de absorver um universo que não nos pertence e que conseguimos, na maioria das vezes, digerir toda sua lógica. E o resultado obviamente depende de cada um.

O filme de Kleber apresenta isso através do que é possível produzir com reflexões e opiniões em torno de um filme e suas possíveis conseqüências, enquanto Woody Allen me mostrou o poder da luz revigorando uma Cecília imersa num poço de frustrações.

Dia seguinte. Londrina, meia noite.

Dentro da programação da Mostra Londrina de Cinema um filme surpresa, Death Proof, de Quentin Tarantino.

A medida que o filme avançava, a minha sensação era de vivenciar uma epifania, o cinema parecia estar se reinventando, mas não estava, dessa vez não eram as águas das nuvens de São Paulo que me encharcavam, eu estava mergulhado num mar de possibilidades para o meu imaginário, aquela frágil Cecília não é parte de uma ficção, ela existe, e o cinema se revela não mais como limite de nossas inundadas realidades, ele rompe todas as fronteiras, amplia o possível.

Não somente os dublês estão à prova da morte.