18 novembro 2010

Pharmácias

O balcão de vidro da farmácia refletia algumas luzes estranhas, Karina não aguentava mais aguardar o atendente. Mais um minuto e seu cérebro poderia explodir. Mas que luzes eram aquelas?

A iluminação da farmácia era padrão: lâmapadas flourescentes em intensidade máxima. Nada justificava o reflexo no vidro. A não ser que a sua mente estivesse em mais um delírio. Não era à toa que Karina estava numa farmácia.

Ela resolveu curtir aquele momento, uma leve tontura parecia fazer seu cérebro inchar... não, ele não iria explodir. Uma memória distante da infância de Karina veio entre as mais confusas imagens que formavam em sua mente. Era ela correndo com uma boneca sem cabeça. As luzes pareciam ficar cada vez mais coloridas.

Num repente de fúria, Karina esmurrou o vidro daquele inóspito balcão. Suas mãos começaram a sangrar, seu sangue pingava em grossas gotas no chão asseado da farmácia. O atendente apareceu e Karina correu em disparada.

Logo na esquina em frente à farmácia, Karina deu de cara com um homem usando uma máscara cirúrgica. Ele olhava profundamente nos olhos dela.

O sangue escorria pelos delgados dedos da mão de Karina e provocava um brilho quando deslizava pelas unhas sem esmalte.

Ao lado do homem da máscara havia um carrinho de espetinhos de carne sobre uma grelha. O cheiro da fumaça embriagou Karina, que sentia suas pernas perdendo a força, a luzes que brilhavam no balcão da farmácia estavam agora na máscara cirúrgica do vendedor de churrasco. Karina quis gritar, mas segurou a voz pois sua vista estava marcada por raios coloridos. O cheiro de carne lhe embriagou ainda mais. Levou a mão cortada até o nariz, quis cheirar seu próprio sangue.

Karina desabou. A mancha vermelha do seu sangue no rosto lhe deu feições assustadoras. Seus olhos não enxergavam nenhum brilho. Sentiu vontade de dormir, se encolheu e adotou a posição fetal.

A fumaça dos espetinhos cobriu Karina como um lençol suave.

11 novembro 2010

Duas feiras em minha vida

Em 2014, Manaus sediará a Copa do Mundo, o seu estádio é o Vivaldo Lima, conhecido como Vivaldão. Ele foi levado abaixo recentemente para a construção de uma nova arena, moderna e nos padrões europeus, mas foi aos seus arredores, no início dos anos 80, que vivi uma experiência por causa de um tomate.

No estacionamento do Vivaldão costumava existir uma feira livre, e numa noite acompanhei minha mãe, que pra lá foi fazer suas compras. Numa das barracas meus olhos deram de cara com um tabuleiro cheio de tomates, observei um deles, era bem redondo e bem vermelho, em seguida percebi que o feirante estava muito ocupado e com a minha mãozinha infantil de Deus surrupiei o encarnado tomate escondendo embaixo da camisa.

Duas barracas depois, mostrei o tomate à minha mãe, ela perguntou onde eu tinha conseguido e tentei justificar que o feirante não estava olhando. Na minha cabecinha eu havia sido esperto, muito bom em fazer algo sem ninguém ver... Doce ilusão.

Foi uma das broncas mais duras que recebi da minha progenitora. Lembro que ela ficou muito nervosa e me arrastou para devolver o tomate. Fiquei arrasado, mas foi uma lição que levei pro resto da vida.

Mal sabia eu que, pouco antes de chegar aos 36 anos de idade, uma outra feira também me traria boas reflexões, dessa vez sem tomates e sim por conta de um rapaz vestido com samba-canção e gravata.

Um dos grupos das Oficinas Kinoforum/Grajaú elaborou um roteiro onde um cara buscava sair dos padrões através do seu vestuário. A idéia era abordar de forma irônica e divertida o tema do cotidiano com suas mesmices e padronizações. E uma das situações era esse personagem caminhando pelas ruas vestido de samba-canção, gravata e tênis.

O personagem principal foi interpretado por um dos alunos do grupo, o Ramon, que topou o desafio sem nennhuma restrição. Eles resolveram gravar uma cena em que o personagem atravessava uma feira livre no bairro do Grajaú. Acompanhei de perto essa gravação e presenciei uma reação no mínimo selvagem por parte dos feirantes que xingaram o Ramon com os palavrões de mais baixo nível possível.

No dia da exibição dos vídeos houve um pequeno debate e Joaquim, outro aluno desse grupo, comentou o que aconteceu na feira acrescentando que aqueles feirantes muito provavelmente vão pra casa pregando a liberdade, mas que suas reações hostis revelaram o contrário, no fundo não estão abertos a uma verdadeira liberdade de expressão e que essa gravação na feira fez com que o grupo tivesse certeza de que estava no caminho certo sobre o assunto que trataram no filme.

Como professor dessa oficina foi uma satisfação verificar o quanto o processo foi importante para esses alunos, eles se expressaram com liberdade e cresceram internamente com isso. Parabéns ao grupo formado por Joaquim, Katharine, Mariane e Ramon.

06 novembro 2010

Lopes e Rosário

Lopes adora pontes. Fotografou várias ao redor do mundo e resolveu criar um mural na entrada do seu apartamento.

A irmã de Lopes se chama Rosário e duvida da capacidade do irmão em criar coisas, principalmente um mural.

Rosário, em seus 25 anos de idade, considera que seus conhecimentos, limitados em essência, podem lhe fornecer todo tipo de opinião. Lopes não acha isso ruim, ele tem muita paciência com a irmã mais nova, dois anos apenas.

Rosário está preocupada com suas próprias dívidas.

Lopes e Rosário nunca tiraram uma foto juntos.

Um dia eles se entenderão perfeitamente.

05 novembro 2010

Animal Town

Era um escritório da pastoral do imigrante, numa paróquia no bairro do Glicério, em São Paulo. Na sala de espera vários imigrantes, em sua maioria vindos da Bolívia e Paraguai, aguardavam o atendimento com a esperança de encontrar uma solução para seus problemas.

Havia um pré-atendimento no qual um padre muito simpático e sorridente conversava com cada um para analisar seus casos e documentações antes da entrevista com a advogada. O calor tomava conta da sala e um ventilador antigo, mas potente, tentava dar conta do refrescamento local. Um homem de aproximadamente 30 anos, feições indígenas, calça jeans surrada e com um semblante preocupado se levanta e senta à mesa. O padre ensaia abrir um sorriso mas logo percebe alguma coisa.

Por alguns segundos os dois ficaram se olhando, sem palavras. As mãos do imigrante estavam juntas e com os dedos entrelaçados, seus ombros eram caídos e pareciam expressar cansaço. O som ambiente eram vozes conversando em tom baixo, o barulho suave da hélice do ventilador e o distante tráfego de carros na Radial Leste. Mas o silêncio entre os dois homens parecia absorver tudo. Enquanto eu pensava que ali havia o silêncio de uma alma, o padre perguntou:

-Quieres sobrevivir, no?

Essa mesma pergunta parecia estar sendo feita aos personagens do filme "Animal Town", de Jeon Kyu-hwan (Coréia do Sul). Dois homens em luta constante com suas angústias mais internas que parecem transformá-los em dois seres não adaptados a um cruel e opressor sistema de leis e normas da sociedade. Percebi que qualquer luta pela sobrevivências está sujeita não somente ao ambiente externo mas também às sombras mais ocultas de nossas personalidades.

A Coréia do Sul em "Animal Town" vive uma grave crise econômica e o papel do Estado é refletido como um ser ausente, que se limita a saber dos seus reais problemas mas parece amarrar as próprias mãos para não agir de forma incisiva. O forte do filme é que esse painel social não vitimiza os personagens, mostra que sobreviver é difícil e quando os nossos conflitos internos não se resolvem nem através de medicação (em um personagem) nem através da religião (no outro personagem), o chão parece ruir e apontar uma questão: compreender a sobrevivência em sociedade é aceitar o hibridismo das relações que temos com nós mesmos e as relações que estabelecemos com os semelhantes?

O silêncio entre o padre e o imigrante foi significativo, principalmente porque talvez tenha sido a primeira vez em muito tempo que alguém olhou diretamente nos olhos daquele estrangeiro.

02 novembro 2010

Diamante e sonhos

O esmalte de suas unhas já estava bastante gasto e suas olheiras ofereciam charme ao seu olhar. Em suas mãos havia um diamante.

Sozinha no banheiro de um bar, ela admirava o brilho daquele diamante. Tinha a certeza de que poderia vendê-lo e lucrar com isso.

Lembrou que a sua vida jamais havia lhe dado lucro nenhum.

Trinta anos de idade e tudo que ela possuía era a amargura de uma existência. Ela não queria mais sonhar, havia chegado o momento de realizar ao menos um de seus sonhos. E qualquer que fosse o sonho, ele precisava ser resultado de algum lucro. Ela lembrou que a cicatriz na sua nuca já excitou muitos homens, mas foi a ignorância de um que lhe deixou essa marca, resultado visível entre os diversos prejuízos que obteve ao longo de sua trajetória.

Ela se esforçou para não lembrar desse homem, mas era impossível, o sorriso torto daquele monstro pelo qual se apaixonou aos 20 anos está costurado em toda a superfície de sua memória. Quis chorar naquele fétido banheiro, mas o brilho do diamante lhe segurou as lágrimas.

Um carro passava em frente ao bar. No banco de trás estava Alfredo, que aos 18 anos voltava embriagado de uma festa. Ele olhou para dentro do bar e viu homens jogando sinuca e alguns poucos homens e mulheres sentados às mesas ao redor. Mal ele podia imaginar o renascimento que ocorria nos fundos daquele estabelecimento.

01 novembro 2010

Desindividualizar

Sempre gosto de observar o primeiro plano de um filme, a cena que abre a narrativa. Gosto de sentir uma pulsação interna toda vez que do quadro escuro surge essa imagem de boas vindas. O primeiro filme que vi na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi "Turnê", de Mathieu Amalric (França), que recebeu o prêmio de melhor direção em Cannes 2010. A tradução literal desse prêmio é 'melhor mise-en-scène', portanto fui à sessão com a expectativa de saber como o diretor desenvolveu os elementos narrativos de sua história.

Eis que vem o primeiro plano. Nos primeiros 10 segundos me perguntei como que alguém que inicia o filme daquela maneira conseguiu o prêmio em Cannes, mas após esses 10 segundos compreendi da melhor forma possível o porquê. A initimidade de um camarim de artistas burlescas é divinamente apresentado com um enquadramento digno de nota 10. Sem firulas ou efeitos, o quadro tem uma composição que transmite ao espectador a sutileza da relação daquelas mulheres com seus corpos, não sabemos nada ainda sobre elas, mas estamos devidamente apresentados a algo não comum... aparentemente.

Tudo muito simples, um plano apenas, sem cortes e que aos poucos vai se formando com a entrada das atrizes. O filme me cativou de imediato.

Daí em diante, "Turnê" foi uma das obras mais contundentes que vi nos últimos anos. Seus 110 minutos me fizeram pensar que entramos numa era onde o individualismo foi superado por algo muito mais perverso. As relações são minimizadas a um ponto em que nada que não seja exclusivamente do interesse pessoal de um individuo pode sobreviver e mais, precisa ser necessariamente destruído. O filme navega nessa questão e não abre concessões, os personagens e as complexidades de seus dramas são expostos sem a necessidade de compaixão.

Considero tudo isso muito atual, sinto diariamente que o automatismo das pessoas, das informações e das coisas transcendem o individualismo. É necessário parar e buscar um firmamento nas relações entre todos nós. Gostaria muito de falar do final do filme, mas deixarei em suspenso nesse texto. Relacione-se sem medo e solte um grito quando enfim sua música preferida ecoar sobre a decadência.